ECONOMIA

Fome avança no Brasil e atinge 33,1 milhões de pessoas

Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 mostra que quatro entre dez famílias conseguem acesso pleno à alimentação. A fome no país voltou a patamares de 1990
Da Redação / Publicado em 8 de junho de 2022

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Foto: Leonardo de França / Arquivo MST

Fome: no Brasil de 2022, apenas quatro famílias em cada dez domicílios conseguem manter acesso pleno à alimentação

Foto: Leonardo de França / Arquivo MST

A escalada da fome no Brasil está expressa em pratos cada vez mais vazios, olhares cada vez mais preocupados, e números em permanente e rápida ascensão.

Nesse primeiro semestre de 2022, um contingente 33,1 milhões de pessoas simplesmente ficou sem ter o que comer.

NESTA REPORTAGEM
É o que demonstra o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, lançado nesta quarta-feira, 8.

A pesquisa é realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).

Criada em 2012, a organização congrega pesquisadores, estudantes e profissionais de todo o país em uma rede de pesquisa e intercâmbio independente e autônoma em relação a governos, partidos políticos, organismos nacionais e internacionais e interesses privados.

A execução em campo do levantamento é do Instituto Vox Populi.

A Ação da Cidadania, a ActionAid, a Fundação Friedrich Ebert Brasil, o Ibirapitanga, a Oxfam Brasil e o Sesc São Paulo são organizações apoiadoras e parceiras dessa iniciativa.

A edição recente da pesquisa mostra que mais da metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau – leve, moderado ou grave (fome). O país regrediu para um patamar equivalente ao da década de 1990. São 14 milhões de novos brasileiros em situação de fome em pouco mais de um ano.

Miséria, desamparo e sofrimento

As estatísticas foram coletadas entre novembro de 2021 e abril de 2022, a partir da realização de entrevistas em 12.745 domicílios, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios, distribuídos nos 26 estados e no Distrito Federal.

A Segurança Alimentar e a Insegurança Alimentar foram medidas, mais uma vez, pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), que também é utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A pesquisa anterior, de 2020, mostrava que a fome no Brasil tinha voltado para patamares equivalentes aos de 2004. A continuidade do desmonte de políticas públicas, a piora no cenário econômico, o acirramento das desigualdades sociais e o segundo ano da pandemia da Covid-19 tornaram o quadro desta segunda pesquisa ainda mais perverso.

“A pandemia surge neste contexto de aumento da pobreza e da miséria, e traz ainda mais desamparo e sofrimento. Os caminhos escolhidos para a política econômica e a gestão inconsequente da pandemia só poderiam levar ao aumento ainda mais escandaloso da desigualdade social e da fome no nosso país”, aponta Ana Maria Segall, médica epidemiologista e pesquisadora da Rede Penssan.

Insegurança alimentar

Foto: Acervo Pessoal

Medidas do governo para conter a fome são isoladas e insuficientes em um cenário de alta inflação dos alimentos, desemprego e queda da renda, observa Maluf, coordenador da Penssan

Foto: Acervo Pessoal

No Brasil de 2022, apenas quatro famílias em cada dez domicílios conseguem manter acesso pleno à alimentação – ou seja, estão em condição de segurança alimentar.

Os outros seis lares se dividem numa escala que vai dos que permanecem preocupados com a possibilidade de não ter alimentos no futuro até os que já passam fome.

De acordo com o 2º Inquérito, em números absolutos, são 125,2 milhões de brasileiros que passaram por algum grau de insegurança alimentar. É um aumento de 7,2% desde 2020, e de 60% em comparação com 2018.

“Já não fazem mais parte da realidade brasileira aquelas políticas públicas de combate à pobreza e à miséria que, entre 2004 e 2013, reduziram a fome a apenas 4,2% dos lares brasileiros.

As medidas tomadas pelo governo para contenção da fome hoje são isoladas e insuficientes, diante de um cenário de alta da inflação, sobretudo dos alimentos, do desemprego e da queda de renda da população, com maior intensidade nos segmentos mais vulnerabilizados”, avalia Renato Maluf, coordenador da Rede Penssan.

Norte e Nordeste mais impactados novamente

A insegurança alimentar segue como uma questão que atinge as regiões do Brasil de forma desigual.

No Norte e no Nordeste, os números chegam, respectivamente, a 71,6% e 68% – são índices expressivamente maiores do que a média nacional de 58,7%.

A fome fez parte do dia a dia de 25,7% das famílias na região Norte e de 21% no Nordeste.

A média nacional é de aproximadamente 15%, e, do Sul, de 10%.

O campo passa mais fome

Foto: Dowglas Silva/ Arquivo MST

As mulheres do campo travam lutas diárias pela sobrevivência da família e da soberania alimentar

Foto: Dowglas Silva/ Arquivo MST

O mesmo agravamento é percebido quando se compara o campo e a cidade.

Nas áreas rurais, a insegurança alimentar (em todos os níveis) esteve presente em mais de 60% dos domicílios.

Destes, 18,6% das famílias convivem com a insegurança alimentar grave (fome), valor maior do que a média nacional.

E até quem produz alimento está pagando um preço alto: a fome atingiu 21,8% dos lares de agricultores familiares e pequenos produtores.

A pobreza das populações rurais associada ao desmonte das políticas de apoio às populações do campo, da floresta e das águas, seguem impondo escassez.

Neste segundo inquérito, fica evidente, mais uma vez, que a fome tem cor.

Enquanto a segurança alimentar está presente em 53,2% dos domicílios onde a pessoa de referência se autodeclara branca, nos lares com responsáveis de raça/cor preta ou parda ela cai para 35%.

Em outras palavras, 65% dos lares comandados por pessoas pretas ou pardas convivem com restrição de alimentos em qualquer nível.

Comparando com o 1º Inquérito, de 2020, em 2021/2022 a fome saltou de 10,4% para 18,1% entre os lares comandados por pretos e pardos.

A fome tem gênero

As diferenças são expressivas na comparação entre os lares chefiados por homens e os lares chefiados por mulheres no período dos dois Inquéritos da Rede Penssan.

Nas casas em que a mulher é a pessoa de referência, a fome passou de 11,2% para 19,3%.

Nos lares que têm homens como responsáveis, a fome passou de 7,0% para 11,9%.

Isso ocorre, entre outros fatores, pela desigualdade salarial entre os gêneros.

Em pouco mais de um ano, a fome dobrou nas famílias com crianças menores de 10 anos – de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022.

Na presença de três ou mais pessoas com até 18 anos de idade no grupo familiar, a fome atingiu 25,7% dos lares.

Já nos domicílios apenas com moradores adultos a segurança alimentar chegou a 47,4%, número maior do que a média nacional.

Renda necessária

Foto: Jade Azevedo/ Arquivo MST

Durante a pandemia, milhares de famílias tiveram acesso a uma refeição por meio de ações solidárias dos movimentos sociais como o MST

Foto: Jade Azevedo/ Arquivo MST

A fome quase desaparece nos lares com renda superior a um salário mínimo por pessoa.

Em 67% dos domicílios com renda maior que um salário mínimo por pessoa, o acesso a alimentos (segurança alimentar) é pleno e garantido.

Porém, se em 2020 não havia domicílios com renda maior que um salário mínimo por pessoa em situação de fome, no início de 2022 essa deixou de ser uma garantia contra a privação do consumo de alimentos – consequência da crise econômica e dos reajustes do salário mínimo abaixo da inflação.

Agora, 3% dos lares nesta faixa de renda tem seus moradores em situação de fome, e 6% convivem com algum grau de restrição quantitativa de alimentos (insegurança alimentar moderada) e 24% não conseguem manter a qualidade adequada de sua alimentação (insegurança alimentar leve).

Desemprego

A fome é maior nos domicílios em que a pessoa responsável está desempregada (36,1%), trabalha na agricultura familiar (22,4%) ou tem emprego informal (21,1%).

Já a segurança alimentar é maior nos lares onde o chefe da família trabalha com carteira assinada, chegando a 53,8% dos domicílios.

Baixa escolaridade

Há fome em 22,3% dos domicílios com responsáveis com baixa escolaridade – quatro anos ou menos de estudo.

Em 2020 esse percentual era de 14,9%. O maior percentual de segurança alimentar é em domicílios cujos responsáveis têm mais de oito anos de estudo: 50,6%.

Sem acesso à água

A falta de acesso regular e permanente à água – também conhecida como insegurança hídrica – é uma realidade para 12% da população geral brasileira.

A insegurança alimentar moderada esteve presente em 22,8% desses lares, e a fome, em 42,0%.

Onde falta água, também falta alimento.

A insegurança alimentar se manifesta em 48,3% dos lares com restrição de acesso à água na região Norte, em 43,0% no Sudeste, em 41,8% do Centro-Oeste e em 41,2% no Nordeste.

A vergonha de sentir fome

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Natal sem fome, campanha da Ação da Cidadania, no Aterro do Flamengo, Rio de Janeiro

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

De todas as famílias entrevistadas pela pesquisa, 8,2% relataram sensação de vergonha, tristeza ou constrangimento pelo uso de meios que ferem a dignidade para conseguir colocar comida na mesa.

Isso corresponde a 15,9 milhões de pessoas no Brasil, que foram obrigadas a usar de meios social e humanamente inaceitáveis, para obtenção de alimentos.

Nessa faixa, 24,3% convivem com as manifestações mais severas de insegurança alimentar (moderada ou grave).

Endividados

Dos entrevistados que informaram endividamento, 49,1% passaram por insegurança alimentar moderada e grave.

Já dos que relataram venda de bens ou equipamentos de trabalho, 48,7% também estavam nessa mesma situação.

E entre os que contaram que precisaram parar de estudar para contribuir com a renda familiar, são 55,2% nesses recortes mais graves de insegurança alimentar.

Preços abusivos

Cerca de metade das famílias que deixaram de comprar, nos últimos três meses, arroz, feijão, vegetais e frutas convivem com a insegurança alimentar moderada ou grave.

Entre as famílias que deixaram de comprar carnes nos três meses anteriores à pesquisa, 70,4% passavam fome.

Dados semelhantes foram encontrados nos lares onde os moradores não haviam comprado frutas (64%) e vegetais (63,6%).

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