MOVIMENTO

União de vinte e cinco sindicatos lota a Praça da Matriz contra “pacote da morte” de Eduardo Leite

Funcionalismo comemorou unidade de servidores como reação a medidas do governador que mexem no plano de carreira e previdência, inclusive para quem já está aposentado. Várias categorias anunciaram greve.
Por Naira Hofmeister / Publicado em 14 de novembro de 2019

Foto: Leonardo Savaris

Parecia que havia sido combinado: às 13h35, cinco minutos depois da hora marcada para o início da concentração para a marcha dos servidores, em frente à sede do Cpers Sindicato, um grupo de professoras ergueu suas sinetas, que soaram com força. Quando o ruído diminuiu, emergiu o grito: “Olê, olê, olá, o leite, vai azedar!”.

Estava iniciando a jornada que reuniu pelo menos 25 sindicatos contra o chamado “pacote da morte”, protocolado pelo governador Eduardo Leite (PSDB) na quarta-feira, na Assembleia Legislativa. Uma unidade incomum e muito celebrada pelas dezenas de lideranças que se revezaram aos microfones. “Se esse pacote tem um mérito é que unificou os servidores”, lembrou o representante da Afocefe. “A unidade é a certeza da nossa vitória”, reforçou o porta-voz do Sintrajufe.

Contendo sete projetos de lei e uma proposta de emenda à constituição, o conjunto de medidas do Piratini altera o plano de carreira do funcionalismo e mexe também na previdência, impactando mesmo quem já está aposentado.

Por isso, quase todas as categorias estavam representadas na marcha desta quinta-feira: professores e servidores da segurança eram os grupos mais fáceis de identificar, mas não faltaram auditores, pessoal da Procuradoria Geral do Estado e de outras carreiras. Alguns foram apenas para demonstrar apoio a colegas, caso dos funcionários da Assembleia Legislativa, que se reuniram em solidariedade a quem enfrenta o mês com salário parcelado há quatro anos.

Sindicatos de servidores municipais e federais também marcaram presença, emanando um “fora todos” que se refletia nas inúmeras pautas que apareceram ao longo da tarde: foram lembrados os cortes do governo federal para a Educação Superior e o projeto Future-se, com o qual o presidente Jair Bolsonaro pretende abrir as universidade à iniciativa privada. Já o Simpa atacou o prefeito Nelson Marchezan (PSDB), que teria proibido o movimento de reunir-se no Largo Glênio Peres, em frente ao Mercado Público. O Cpers inicia greve na segunda-feira, 18. Sindicaixa, Sindsepe-RS, Sintergs e Afagro também param a partir do sua 26 – mesma data em que servidores de universidades e institutos federais fazem uma paralisação de 48 horas “em apoio à luta estadual”.

Por isso, foram organizadas três marchas: a do Cpers, com saída da Alberto Bins, a dos policiais civis, iniciada no palácio da Polícia e uma dos servidores do judiciário, que começou nas Torres Gêmeas do MP. O Extra Classe acompanhou o movimento liderado pelo magistério, que percorreu as ruas do Centro Histórico e recebeu o apoio e solidariedade da população.

Foto: Leonardo Savaris

“Estamos lutando por todos”

Eram 13h57min quando se formou uma fileira de professoras e servidores da Educação sob uma bandeira gigante na avenida Alberto Bins, cujos passos levaram consigo milhares até o Piratini. Estimativas do movimento davam conta de que entre 10 e 15 mil pessoas acompanharam a marcha do Cpers. Na praça, quando todos estavam reunidos, a organização estimou 30 mil.

Entre os militantes, um grupo com cartazes pintados à mão chamava atenção. “É tanta coisa errada que não cabe em um cartaz”, dizia um deles. Eram as professoras e servidoras da Escola Estadual de Ensino Médio Albano Alvez Pereira, onde estudam 425 jovens de Palmares do Sul. Lá, a biblioteca não abre as portas desde o início do ano, e professores se uniram aos pais para consertar portas, colocar azulejos nos banheiros, pintar a quadra de esportes e até comprar bolas para as aulas de Educação Física. “Fazemos bingos, brechó, essas coisas. Assim arrecadamos dinheiro”, explicou Milene Braz, a orientadora educacional.

A professora de Matemática Suzana Silveira ingressou no corpo escolar em maio, mas até hoje não recebeu o primeiro salário. O que a salvou foi a solidariedade dos estudantes, que começaram a doar o que sobrava do vale transporte para que ela pudesse seguri dando aulas.

Solidariedade nas esquinas

A saída foi pontual e a caminhada durou pouco mais de meia hora. às 14h40 o carro de som já estava estacionado em frente ao Piratini. No caminho, o carro de som conversava com população: “Não é só o servidor público que estão atacando… eles querem que todos nós trabalhemos até a morte! Quem trabalha pela CLT, quem é terceirizado. Até os motoristas de aplicativo, isso é contigo também”, convocava a voz feminina ao microfone. “Tá na hora de sacudir esse estado e esse país”, completava.

O apelo surtiu efeito: nas esquinas e dentro das lojas, as pessoas pararam para escutar os servidores. O olhar atento era frequentemente acompanhado por um movimento de “sim” com a cabeça. “Tem mais é que protestar mesmo, o professor tem que receber seu salário”, apoiou Mônica Dias, gestora da farmácia São João que fica na esquina da Rua da Praia com a Dr. Flores.

Poucas quadras acima, o estudante Rafael Hoffmann, 22 anos, deu um tempo no skate para ouvir a mensagem dos servidores: “Estudei a vida toda em escola pública, eles não estão recebendo direito, estão certos em reclamar”.

Já na Salgado Filho, na esquina com a Vigário José Inácio, outro jovem, Jordan Hunter, de 18, mostrou solidariedade ao movimento. A situação econômica da família o obrigou a parar de estudar nesse ano e sua rotina atual é estender diariamente uma lona azul sobre o asfalto onde exibe meias, chinelos de dedo, guarda-chuvas e outros itens à venda. “Nosso direito não está sendo cumprido: ter escola de qualidade, saúde e mais oportunidades”, reclamou o rapaz, que espera voltar à escola em 2020.

Claro que o apoio não foi unânime, embora aparentemente majoritário. Único entrevistado contrario ao movimento, o aposentado João Machado, 74 asos, se ressentia porque o protesto era protagonizado por quem tem estabilidade. “eu sei que eles estão agora com o salário atrasado. Mas já puderam comprar seu carro, sua televisão. Eu não tenho nada disso, preciso viver com 900 reais e tento complementar vendendo artesanato, mas está difícil”, disse, enquanto aguardava o ônibus da linha Alameda.

Foto: Leonardo Savairs

“Não dobramos a espinha”

Às 14h40, o caminhão de som estacionava na frente do Piratini. A presidente do Cpers Sindicato, Helenir Schüler, conduziu o ato unificado. Lembrando que o enfrentamento ao pacote de medidas não seria tarefa fácil, ela fez uma provocação: “nós não dobramos a espinha para a ditadura, não vamos nos curvar a um menino. Leite, nós chegamos”, avisou, recebendo aplausos e vivas como resposta.

O representante do Sindicato dos Auditores do Tribunal de Contas do Estado, relacionou o “pacote da morte” com o Regime de Recuperação Fiscal, que vem sendo negociado com o governo federal desde a gestão de José Ivo Sartori. “Temos que rejeitar o pacote e a adesão ao RRF, que vem sendo a justificativa para medidas duras. A dívida do Estado já está paga, mas aderindo ao RRF, o governo abre mão dessa discussão”.

As privatizações do setor elétrico sem que haja plebiscito, medida autorizada pela Assembleia legislativa este ano, também foram lembradas, assim como as extinções de fundações públicas.

Bella Ciao versão leite azedo

Mas nem tudo foi discurso. Um dos números culturais da tarde ficou a cargo de um coral de professoras aposentadas de Bento Gonçalves, que se apresentaram vestindo camisetas com os dizeres “lute como uma educadora”. Elas cantaram o Hino Riograndense e a canção anarquista Bella Ciao, que ficou famosa no seriado A Casa de Papel.

“É com muita alegria que vamos cantar essa música, que fala sobre um partigiano (integrante da resistência ao fascismo) que se despede de sua amada e pede que, se morrer na luta, o enterrem na montanha mais alta, ao lado da bela flor, para que saibam que ali está alguém que lutou pela liberdade. E nós estamos aqui, lutando pela nossa liberdade e pelos nossos direitos”, avisou uma das integrantes do coro.

O ritmo de Bella Ciao, aliás, já tinha inspirado os servidores durante a caminhada, que criaram uma versão local, cujos versos são: “Trabalhadores, unificados, é pra lutar pra lutar, pra lutar-tar-tar. Esse pacote, do leite azedo, nós iremos derrubar”. Também teve funk adaptado e outras palavras de ordem bem humoradas.

 

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