OPINIÃO

A vacina que Marques não tomou

Por Moisés Mendes / Publicado em 11 de novembro de 2020
O jornalista Jairo Marques não teve, por morar nos grotões de Minas, a chance de ser vacinado

Foto: Facebook/ Reprodução

O jornalista Jairo Marques não teve, por morar nos grotões de Minas, a chance de ser vacinado

Foto: Facebook/ Reprodução

O brasileiro talvez seja um dos povos mais confusos sobre a vacinação contra a pandemia. Até pouco tempo, muitos chegaram a pensar que, como teremos vacinas de dezenas de laboratórios, seria possível escolher a preferida.

Escolheríamos a vacina como quem escolhe marca de remédio ou de sabonete. A direita poderia dizer: a de Oxford, sim; a de Cuba, nem pensar. Mas pelo menos de 17% a 20% dos brasileiros não irão fazer escolhas, porque não querem ser vacinados.

São em muitos casos pessoas que defendem o uso de armas, que concordaram com Bolsonaro sobre o blefe do golpe militar, que pregam ódios e todo tipo de violência bolsonarista, mas temem a vacina.

Bolsonaro diz que os temerosos com a pandemia são maricas. Mas ele induz seus seguidores a terem medo da vacina, principalmente a chinesa. E assim o Brasil vai insuflando suas ignorâncias, potencializadas desde o golpe de agosto de 2016.

A vacina pode transformar héteros em gays, pode matar e pode fazer com que as crianças fiquem autistas, é o que dizem nas redes sociais. Bolsonaro é o animador da matraca antivacina, por saber que é fácil propagar crendices no Brasil.

O brasileiro da era bolsonarista se delicia com teorias conspiratórias. A vacina trará um novo vírus. A vacina chinesa pode provocar paralisia infantil. Pode cegar. E, se facilitarem, pode transformar em perigosos comunistas os pobres e os miseráveis que não têm nada, mas que se consideram capitalistas.

Há uma certa euforia com as certezas de que qualquer um pode questionar a ciência no Brasil. A rejeição à vacina antiCovid amplia o desprezo criminoso pela imunização contra outras doenças e desprotege principalmente as crianças.

Tomar ou não a vacina, para quem vive em comunidade, nunca deveria ser uma decisão pessoal. Quem não se submeter à obrigatoriedade, que deixe de viver coletivamente e se recolha ao isolamento e a um mundo particular e egoísta.

O jornalista Jairo Marques escreveu esta semana na Folha um comovente depoimento sobre o que significa não ter sido imunizado contra a poliomielite, não por escolha, mas por imposição de uma realidade.

Vou compartilhar trechos que emocionam, porque Marques – cadeirante desde os nove anos – está falando dele mesmo. O jornalista não teve, por morar nos grotões de Minas, a chance de ser vacinado:

“E se eu pudesse correr, como seriam meus cabelos e como andaria a minha pressa? E se eu pudesse jogar minha filha para o alto, como seria a risada de nós dois? E se eu pudesse ter amado alguém num canto, num encanto de ondas, numa cabana lá longe, no teto ao luar, meu coração teria outra batida, minhas inquietações seriam mais bem assistidas?

Ter contraído paralisia infantil de maneira severa e bastante incapacitante, a ponto de me limitar o andar por toda a existência, fez de mim uma pessoa que, também para sempre, cultivaria a prática de pensar a respeito de como seria uma outra vida possível.

Não tome vacinas e flerte com o risco de ter um corpo desencontrado, por dentro e por fora, daquilo que é a referência de quase todos ao seu redor”. 

O Estado que não impõe a obrigatoriedade da imunização entrega os menos protegidos ao abandono, aos riscos, às sequelas ou à morte. Marques observa:

“Se a gente não obrigar as pessoas a se vacinarem, também ninguém vai ter de se preocupar em saber como os pobres irão se imunizar, como a vacina irá chegar aos ermos – foi em um ermo que fui abatido –, como proteger os velhos, os indefesos, os ingênuos, os desprotegidos…”

Atacar a vacina e disseminar confusão é menosprezar não só os ingênuos, mas os mais pobres e os mais vulneráveis, como Bolsonaro sempre tem feito.

A pregação de Bolsonaro, o machão que teme os maricas, tenta fortalecer a imagem de que ele é um homem autêntico, que fala o que pensa, por mais inadequado que possa ser.

É um criminoso impune, que as instituições não enquadram por inércia, por preguiça ou por acovardamento, o que no fim é tudo a mesma coisa.

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