OPINIÃO

O extermínio dos indefesos e a reconstrução do Brasil

Por Marcelo Pereira dos Santos / Publicado em 12 de fevereiro de 2022

Foto: Reprodução Facebook

O imigrante Kabamgabe, que migrou para o Brasil para fugir da violência do Congo, foi alvo de ex-policiais militares que fazem bico como “segurança” no Rio

Foto: Reprodução Facebook

“Cardapear” é um dos vários serviços requisitados nas praias do Rio de Janeiro. É preciso perspicácia para atrair clientes e agilidade para se movimentar de um lado para o outro. Como tantas outras ocupações, esse trabalho é remunerado por comissão. O contrato de trabalho se limita a um acordo verbal e a extensão dos direitos quem determina é a parte contratante.

O congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, refugiado africano e fugitivo da guerra e da fome, “cardapeava” para o quiosque Tropicália. Até as pedras sabem que esses pontos comerciais são dominados pelo estado paralelo, são também concessões públicas e fiscalizadas pela prefeitura.

Portanto, Moïse conhecia a índole de seus empregadores e da turma dos quiosques. O que não passou pela sua cabeça é que a cobrança de dois dias de trabalho, conforme divulgado pela imprensa, precipitaria uma reação tão hedionda.

Um crime como esse revela de forma visceral o Brasil que insistimos em esquecer que ele existe

Certamente, boa parte de quem está lendo este artigo não convive tão diretamente com a barbárie. No entanto, para maioria do nosso povo, o Brasil que canta e é feliz só existe excepcionalmente. O mais trágico é que o monopólio da violência e da dominação é tão sofisticado e perverso que a maioria das vítimas são indiferentes a sua própria condição.

O corpo de Moïse ficou estendido no chão por algumas horas, enquanto os quiosques funcionavam normalmente. Mãos que haviam sacrificado permaneceram servindo bebidas e abastecendo os freezes.

Os frequentadores continuaram passeando de forma desassossegada. A polícia rondou o local com a sua indiferença costumeira quando se trata de pobre, preto e refugiado. “Em vez de reza, uma praga de alguém e um silêncio servindo de amém”. Isso aqui é menos samba de Ari Barroso e mais “de frente para o crime” de Aldir Blanc e João Bosco.

Na verdade, o Brasil se formou sob o signo do extermínio dos indefesos

Matanças, torturas à luz do dia, espancamentos, interrogatórios, prisões, humilhações, brutalidades etc, compõem, historicamente, o diário dos pobres. Para os malditos, o estado de exceção analisado por Giogio Agamben sempre existiu. Os poderosos, com ou sem mandato, determinam em que condições a ralé deve sobreviver e morrer. O conceito de necropolítica nos termos de Achille Mbembe se encaixa perfeitamente.

Sim, somos violentos e autoritários. Antes de continuar a leitura, peço que olhe para o seu entorno: a família, a sala de aula, o local de trabalho, a organização que participa e a religião que frequenta, se são realmente espaços democráticos, de respeito aos direitos e à dignidade humana?

Quando o governante arma a sua falange e condecora os mais violentos, os cães raivosos se assanham

A imagem do presidente em um campo de tiro manuseando uma pistola, justo em uma semana honrosa, explica tudo. As armas estão apontadas e o risco de uma onda de violência é real.

Antes de estabelecer um paralelo entre a morte de Moïse e as relações de trabalho, principal questão deste artigo, destacarei dois aspectos que colocam a violência em um patamar desconhecido por nós: mídias sociais e religião.

A violência é alimentada pelo que designo de “a nova economia das imagens”. As mídias são as grandes semeadoras da cultura da violência, forjando mentes predispostas ao ódio e à intolerância. Diariamente recebemos a nossa ração de violência. As redes sociais se estruturam na lógica do salve-se o mais forte e vida longa ao mais adaptado. A defesa mal-intencionada da liberdade de opinião, que ganhou destaque propositalmente em uma semana de assassinatos racistas, visa instalar o vale tudo.

No âmbito da religião, a linguagem belicosa de pastores e pastoras preparam soldados de cristo dispostos a eliminar os “filhos do diabo”

Os cruzados da atualidade, muitos com carreira militar ou convertidos do crime, avançam sobre os “infiéis e os filhos do diabo” com o evangelho na mão e a chibata na outra. É o evangelho armado. Para quem acha que exagero, preste atenção na linguagem e nas simbologias utilizadas nas pregações. Pesquise sobre os atentados contra as casas de religião de matriz africana. Leia sobre a sintonia entre a bala e a bíblia no Congresso Nacional.

É sintomático que o assassinato de Moïse foi motivado por um conflito de dívida de trabalho. Revela que a violência instalada nos espaços vitais da sociedade inunda as relações de trabalho.

O mundo do trabalho no Brasil sempre foi marcado pelo autoritarismo, violência e incessantes tentativas de negação de direitos. A reforma trabalhista ampliou o espaço das informalidades. O desemprego colocou uma espada afiada e pontiaguda nas costas dos trabalhadores para inibir reações.

A pandemia aflorou práticas que tratam as relações de trabalho como qualquer outra mercadoria

Os casos de sujeição de trabalhadores nestes dois anos de pandemia na área da saúde, por exemplo, além de horrorosos, flertam com o crime.

Um sindicalismo, que possui o “ouvido colado nos locais de trabalho”, sabe que o pessoal do staff gerencial recebeu sua dose de autoritarismo e estão autorizados a humilhar, punir, subjugar etc. Mesmo enfraquecidos pelos ataques institucionais e ideológicos, o grande desafio dos sindicatos é empoderar os trabalhadores para romper com as correntes da servidão.

Para isso, precisamos lutar por um processo de reconstrução do Brasil que coloque a geração de emprego como algo central. Com índices tão altos de desemprego, as relações de trabalho, que por natureza são assimétricas, retiram a vitalidade da luta por direitos e dignidade.

O grito da mãe e de tantas mães, que perderam seus filhos e são humilhadas nas delegacias, é comovente. Mesmo sabendo que a justiça é surda para os pobres, o reforço às instituições e a democracia são os caminhos que a classe trabalhadora trilhou ao longo de sua história.

 

João Marcelo Pereira dos Santos é historiador, professor e assessor da Central Única dos Trabalhadores do Rio Grande do Sul (CUT-RS)

Comentários