OPINIÃO

O que queremos com as prisões?

Por Marcos Rolim / Publicado em 20 de novembro de 2023
O que queremos com as prisões

Foto: Luiz Silveira/Agência CNJ

“Superlotar prisões, entretanto, inviabiliza políticas eficientes de tratamento
penal e está na base da formação e do fortalecimento das
facções criminais, todas elas surgidas dentro dos presídios brasileiros”

Foto: Luiz Silveira/Agência CNJ

No Brasil, há temas malditos. Tocá-los é uma decisão que demanda coragem cívica, um produto escasso no mercado. A reforma prisional é um desses temas. Quantas lideranças políticas no Brasil estão, neste momento, envolvidas com a necessidade de transformar a realidade penitenciária nacional de forma a retirá-la da prateleira da vergonha nacional? Sinceramente, não sei.

Observe-se que não estou mencionando um problema menor, mas perguntando sobre o engajamento na busca de soluções para uma das questões mais desafiadoras do Brasil, do qual depende, em larga medida, toda política de segurança que mereça esse nome.

A pergunta deve ser ampliada, além da representação política e dos gestores públicos, para o Poder Judiciário e os órgãos autônomos. A respeito dessa responsabilidade, aliás, recomendo muito a entrevista que fiz para Crítica & Controle com o professor Daniel Sarmento, um dos grandes juristas brasileiros.

A pergunta a respeito dos esforços pela transformação do sistema penitenciário é ainda mais pertinente, desde 2015, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou a realidade de nossas prisões como um “Estado de Coisas Inconstitucional” (ADPF 347).

O conceito, vale lembrar, foi criado pela Corte Constitucional da Colômbia para indicar a necessidade de uma resposta de especial complexidade diante de casos de massivas violações de direitos humanos, decorrentes de falhas estruturais e da ausência de políticas públicas.

Diante de realidades dessa natureza, as respostas tradicionais de responsabilização individual se revelam ou impossíveis ou incapazes de produzir efeito significativo. Por isso, a caracterização de um “Estado de Coisas Inconstitucional” demanda a construção de uma resposta coordenada entre todos os poderes e órgãos que, para tanto, devem apresentar os seus planos.

Atualmente, assinale-se, há outras Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) sendo examinadas pelo Supremo que sugerem o emprego do mesmo conceito de “Estado de Coisas Inconstitucional”, envolvendo temas como o racismo estrutural e a destruição ambiental. Muito bem, mas o que foi feito, desde 2015, para superar a realidade de “Estado de Coisas Inconstitucional” do sistema penitenciário?

Há uma forma bem simples de ignorar essa pergunta quando se imagina que esse seja um assunto que interesse aos presos e que, por decorrência, não diz respeito às demais pessoas cumpridoras de suas obrigações legais.

Não vou sequer examinar o pressuposto metafísico dessa divisão entre as pessoas em duas naturezas fixas, mas afirmo que a reforma prisional interessa muito mais às pessoas em liberdade do que às pessoas presas. Em larga medida, essa reforma exige uma nova política criminal. Explico.

O processo de encarceramento massivo no Brasil tem sido alimentado, basicamente, pela fracassada política de guerra às drogas. Por conta dela, estamos prendendo centenas de milhares de jovens pobres, em sua maioria negros, residentes em nossas periferias.

Tais prisões, quase sempre em flagrantes presumidos – o que envolve o encarceramento também de usuários como se traficantes fossem –, não produzem qualquer impacto no modelo de negócio do tráfico, que substitui rapidamente sua mão de obra.

Superlotar prisões, entretanto, inviabiliza políticas eficientes de tratamento penal e está na base da formação e do fortalecimento das facções criminais, todas elas surgidas dentro dos presídios brasileiros.

A política criminal produtora desse tipo de encarceramento está muito provavelmente vinculada ao aumento dos roubos, porque as drogas apreendidas pelas polícias terão de ser pagas aos fornecedores. O alegado “prejuízo” das apreensões é quase sempre ilusório porque é suprido pela migração do crime, de forma a se manter a “regra de ouro” do modelo de negócio que é: “no tráfico não há devedores”.

A guerra contra as drogas, no mais, drena grande parte dos esforços e dos recursos das polícias que, não fosse essa demanda, poderiam se dedicar à investigação e à repressão de crimes mais graves, como homicídios, feminicídios, crimes sexuais e corrupção. Por conta disso, temos um custo de oportunidade que é cada vez mais impressionante quando se vê o pequeno percentual de presos condenados por crimes contra a vida e por crimes sexuais.

Abandonar os presos e as presas ao destino que as facções lhes reservam e tratá-los da pior forma possível, não apenas privando-os da liberdade, mas lhes impondo toda a sorte de humilhações, brutalidades e restrições é, finalmente, uma ótima ideia para estruturar e ampliar as dinâmicas criminais, um resultado cuja conta é paga por todos nós.

Ao invés de uma execução penal vocacionada para a formação profissional e a educação, ao invés da construção de uma política pública com base em evidências, jogamos a chave fora e mudamos de assunto. Nesse resultado, incrivelmente, todos os governos se encontram e confraternizam.

Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.

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