OPINIÃO

Uma tentação chamada Mourão

Por Moisés Mendes / Publicado em 12 de fevereiro de 2019
“Os militares teriam capacidade de liderança e de gestão que Bolsonaro não tem. Mas que garantia eles oferecem de que não se repetirão os crimes de tortura, desaparecimentos e assassinatos pós-64?”

Foto: Marcelo Camargo/ ABr

“Os militares teriam capacidade de liderança e de gestão que Bolsonaro não tem. Mas que garantia eles oferecem de que não se repetirão os crimes de tortura, desaparecimentos e assassinatos pós-64?”

Foto: Marcelo Camargo/ ABr

A esquerda brasileira vem sendo atormentada por uma fantasia estratégica. Tem gente que passa o dia pensando num governo sob total controle do vice-presidente Hamilton Mourão e vai dormir assombrada pelo próprio desejo que não pode ser confessado.

Já ouvimos, em alguma roda de conversa, o argumento básico para que a tentação se cumpra logo. É este: quatro anos de Mourão deixariam menos sequelas para todos, inclusive para a democracia e até para as esquerdas, do que apenas dois anos de Bolsonaro.

Vamos às outras desculpas para que Mourão seja visto como a possibilidade de transição entre uma democracia estropiada e uma democracia plena. A primeira: Bolsonaro seria uma tragédia em todas as áreas, da economia, das conquistas sociais, dos direitos humanos, dos costumes, da educação.

Universidades, sindicatos, Igreja Católica, Ongs, estudantes (que continuam quietos), MST e movimentos sociais não teriam como enfrentar Bolsonaro, a partir do momento em que a economia começasse a reagir e ele acionasse programas que contemplem demandas dos pobres e dos miseráveis.

A classe média, mesmo contrariada, mesmo com direitos sequestrados, incluindo a  aposentadoria, não reage a mais nada. Ajudou a derrubar Dilma, não reagiu a Michel Temer, não fez questão de viabilizar Alckmin ou Meirelles e recebeu Bolsonaro como seu novo líder. Mas Bolsonaro não quer saber da classe média, quer ser prestativo com os mais ricos e conquistar lastro social nas periferias, para pôr em andamento o plano de desmonte de resistências, onde estiverem.

Mourão, que já conversou com a CUT e disse estar disposto a dialogar com os movimentos sociais, seria o contraponto de uma presumida racionalidade à imposição da pauta de crueldades dos Bolsonaros (pai e filhos) e dos ministros fundamentalistas da Educação, dos Direitos Humanos, do Meio Ambiente, do Itamaraty e da Justiça.

Quem são os parceiros de Mourão num governo com uma centena de militares em postos de comando? Mourão e Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, estariam alinhados?

Quem garante que os próprios militares não estão, no detalhamento de interesses e ideias, subdivididos em alas inconciliáveis, sem conexão entre si além do fato de que são homens que um dia usaram farda e falam em nome da defesa da nação?

Mourão já admitiu a possibilidade do que definiu como “autogolpe”, em que o próprio governo eleito convocaria os militares para que assumissem o controle do país. Mas também já defendeu que o deputado Jean Wyllys, inimigo dos Bolsonaros, não poderia ser ameaçado e obrigado a buscar o exílio por causa de suas ideias. Foi uma cutucada na família.

Também disse que o aborto é uma “decisão da pessoa” e assim provocou os neopentecostais que sustentam o bolsonarismo. Insinuou que, se depender dele, a embaixada do Brasil em Israel não sai de Tel Aviv para Jerusalém. E assim desautorizou Bolsonaro.

Mas nada disse até hoje sobre as ameaças aos índios, sobre o risco de destruição do meio ambiente. com a política de Bolsonaro de concessões a todo tipo de desmando nessa área. e tampouco sobre os últimos movimentos que indicam um ataque em massa da ala militar – sob o comando de Heleno – à Igreja Católica.

A tentação de imaginar um governo sob o controle de Mourão incomoda as esquerdas porque restitui a memória da ditadura. E claro que constrange os que desejariam trocar um governo dominado pela sanha bolsonarista por uma suposta sensatez militarista.

Os militares teriam capacidade de liderança e de gestão que Bolsonaro não tem. Têm a vocação atávica para a intervenção na política desde o golpe da proclamação da República. Mas que garantia eles oferecem de que não se repetirão os crimes de tortura, desaparecimentos e assassinatos pós-64?

Também não são mais os mesmos nacionalistas da ditadura. Poderiam cair na tentação de se perpetuar no poder e se transformariam numa nova “classe política” de ex-fardados agora civis, com ocupação de espaços que o Brasil nunca teve, nem sob Médici.

Tudo, das relações exteriores à educação, pode estar sob total controle dos militares. Eles, e não Bolsonaro (que talvez possa apenas reinar, sempre falando com fastio do que não sabe), serão os interlocutores com quem quiser desafiar ou dialogar com o governo.

É o que parte das esquerdas almeja secretamente (num sonho sonhado com a Globo), mas apenas como torcida, porque não há o que fazer. É da lógica desse desejo que os militares estabeleçam limites para suportar o desgaste de conviver com uma família que tem fortes laços comprovados com milicianos da favela do Rio das Pedras, com três irmãos impulsivos e um pai que os trata como garotos.

São muitas as evidências de que os filhos de Bolsonaro desencadearam uma sequência de ataques a Mourão. Por inveja, para mandar recados e por incompetência política. Os Bolsonaros acham que, como têm votos e milícias, na carona do pai, seriam imunes a qualquer ataque.

Pois perde o poder em democracias, mesmo as capengas, quem tem votos. Mas os Bolsonaros talvez nem saibam disso, ou não tenham, pelo excesso de soberba, a compreensão dos riscos envolvidos nos exageros que cometem.

Os Bolsonaros podem achar que, mantendo a artilharia de mensagens primárias pelo Twitter e pelo WhatsApp, estão governando, quando estão apenas em campanha permanente e atirando em sombras que se mexem, enquanto Mourão governa.

*Moisés Mendes é jornalista. Escreve quinzenalmente para o jornal Extra Classe

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