OPINIÃO

Precisamos falar sobre os torturadores

Por Moisés Mendes / Publicado em 8 de outubro de 2020

Foto Ustra: Wilson Dias/Agência Brasil | Foto Mourão: Sérgio Lima/Presidência da República

Foto Ustra: Wilson Dias/Agência Brasil | Foto Mourão: Sérgio Lima/Presidência da República


O Brasil é o país em que os torturadores, ao invés de julgados, são exaltados como figuras históricas. A anistia que os protegeu parece assegurar imunidade e impunidade também aos que proclamam seus crimes como serviços prestados à pátria.

Aqui, elogiam torturadores com naturalidade, como fez o vice-presidente Hamilton Mourão em entrevista à TV alemã DW. Mourão classificou Brilhante Ustra como “um homem de honra”.

O coronel Ustra, herói de Bolsonaro, morreu em 2015, quando já estava consagrado como o mais famoso e cruel torturador brasileiro. Torturava e ria dos gritos dos torturados.

Elogiadores de criminosos não agiriam impunemente na Argentina e no Chile e pelo menos ouviriam reações fortes no Uruguai. Mas aqui tudo ainda é possível e permitido a um vice-presidente que já usou farda.

A notícia mais recente, que oferece algum consolo, é a decisão da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), para que seja levada adiante, no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), a ação civil pública contra três delegados de São Paulo.

Aparecido Laerte Calandra, David dos Santos Araujo e Dirceu Gravina são acusados de tortura no tempo do DOI-Codi, nos anos 70. Pela anistia, reafirmada pelo Supremo, torturadores e assassinos não podem ser condenados criminalmente nem como autores de delitos contra a humanidade.

Mas podem, segundo a ação do Ministério Público – que o TRF3 tentou refugar, mas foi reconhecida pelo ministro Og Fernandes, relator do recurso no STJ –, ser processados na área cível, com a indenização de parentes das vítimas, com reparação financeira e moral.

Pela reparação moral, os torturadores deveriam pedir desculpas aos familiares dos presos políticos que eles torturaram e mataram. O jornalista Vladimir Herzog, assassinado em 1975, é uma das vítimas citadas nos processos.

Mas será que veremos um dia os torturadores elogiados como heróis da extrema direita, até pelo vice-presidente, serem obrigados pela Justiça a pedir desculpas?

A ação levanta um dos tapetes com as imundícies da ditadura. Vamos anotar os nomes dos procuradores que enfrentam amigos e discípulos de Ustra e exigem a reparação possível: Marlon Weichert, Eugenia Gonzaga, Jefferson Aparecido Dias, Luiz Fernando Costa, Adriana da Silva Fernandes e Sergio Suiama.

No Uruguai, um promotor também enfrenta crimes e ameaças dos que ainda defendem torturadores. É Rodrigo Morosoli, que desafiou o mais poderoso líder da extrema direita do país, o senador e ex-chefe do Exército Guido Manini Rios.

Manini Rios era general e chefe do Exército, em 2018, quando o coronel José Nino Gavazzo confessou ter jogado no Rio Negro, em 1973, o corpo do tupamaro Roberto Gomensoro.

Gavazzo, hoje com 80 anos, é uma espécie de Brilhante Ustra uruguaio, definido por suas vítimas como um torturador irônico e arrogante.

A confissão foi feita no Tribunal de Honra, das Forças Armadas, que funciona como uma espécie de ‘justiça’ militar e trata de questões ditas disciplinares e administrativas.

Morosoli acusou Manini Rios de saber e silenciar sobre a confissão de um crime imprescritível de lesa humanidade e tentou processá-lo. O general deveria ter comunicado a confissão à Justiça Comum.

Mas as bancadas de direita do Senado protegeram Manini Rios, ao negar licença para que o Ministério Público abrisse inquérito contra o chefe do partido Cabildo Abierto. E agora Manini, o Bolsonaro uruguaio, ameaça inverter a situação e processar o promotor por perseguição política.

O Uruguai tem uma lei de anistia semelhante à brasileira. Aqui, o Supremo determinou que a lei, de 1979, deveria ser cumprida, sem a possibilidade de incriminar torturadores. No Uruguai, dois referendos populares mantiveram a anistia de 1986.

A vantagem em relação ao Brasil é que lá há reações no Ministério Público, e as mães e familiares de assassinados e desaparecidos são ativas e saem às ruas. Como saíram quando o Senado formou a barricada de proteção a Manini Rios.

Na Argentina, o governo de Mauricio Macri esforçou-se para aparelhar a Justiça e conseguiu, durante os quatro anos de mandato, desestimular investigações e processos sobre crimes de lesa humanidade da ditadura ainda sem julgamento.

Esta semana, o presidente da Corte Suprema, Carlos Rosenkrantz, decidiu convocar reunião de uma comissão permanente interpoderes,  para analisar os processos.

Foi boicotado pelo governo de Alberto Fernández, por entidades de direitos humanos, organizações de familiares de desaparecidos e políticos não alinhados com a direita.

A comissão, com participação de representantes da Justiça, do governo, Senado, da Câmara e de entidades civis, não se reúne desde 23 de setembro de 2016. Rosenkrantz se negava a convocar reuniões, porque o Judiciário sob controle não queria mexer com os torturadores e seus protetores.

O boicote é uma reação política à tentativa de Rosenkrantz de se livrar da acusação de que era omisso e manobrado pelo macrismo.

Mesmo assim, criminosos da ditadura argentina vivem sob o tormento de que um dia serão condenados, como muitos já foram, inclusive os chefes militares.

O Brasil assiste a essas movimentações ainda resignado com o resultado de iniciativas, bravas mas inconsequentes, como a Comissão da Verdade. A frustração com ações que poderiam enquadrar os militares acabou por fortalecê-los.

É por isso que os ajudantes de Brilhante Ustra continuam impunes e o próprio Ustra é elogiado. No Brasil, até os torturadores morrem, mas a tortura não tem fim.

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