ECONOMIA

O capitalismo precisa de freio

Eduardo Moreira, ex-banqueiro, é crítico contumaz do investimento do mercado financeiro na desinformação da população para lucrar mais. Neste ano, lançou o movimento "somos 70 por cento"
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 10 de agosto de 2020

O capitalismo precisa de freio - entrevista com Eduardo Moreira

Fotos: Danielle Sampaulo/Divulgação

Fotos: Danielle Sampaulo/Divulgação

Eduardo Moreira era um ilustre desconhecido das esquerdas até os debates no Congresso sobre a Reforma da Previdência. Uma exposição sua no Senado contrapondo a proposta de Paulo Guedes acabou viralizando e municiou de argumentos muitos ciberativistas que combatiam a proposta do ministro.

Afinal, um ex-banqueiro de investimentos, com uma trajetória acadêmica invejável, dizia em público que a ideia do governo era uma falácia.

Recentemente ele tomou conta novamente das redes sociais. Ao lançar o movimento Somos 70 por cento (#Somos70porcento), que destaca que a maioria do Brasil desaprova a política de Bolsonaro, acabou tendo um protagonismo que afirma não ter: “Eu lancei um hashtag”, diz.

Listado em 2016 como um dos “três melhores economistas do Brasil” pela revista Investidor Institucional, Moreira fala nessa entrevista sobre seus livros publicados pela editora  Civilização Brasileira onde escreve críticas sobre assuntos que conhece bem: investimentos, economia do desejo e um tema que lhe é caro, a desigualdade social.

Registra também sua admiração pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e, pego de surpresa, diz que o capitalismo precisa de freio.

Extra classe – Você surpreendeu muita gente quando rebateu fortemente no Senado a proposta de Reforma da Previdência de Paulo Guedes. Como chegaste àquela sessão e quais foram suas motivações?

Eduardo Moreira – Foi um vídeo que eu gravei e postei sobre a Reforma da Previdência que criticava uma entrevista do Paulo Guedes ao Estadão, onde ele falava mais ou menos o seguinte – “não, na verdade a gente colocou ali pra cortar o valor do BPC pela metade e mudar a idade da aposentadoria rural, mas aquilo ali foi só pra gente poder negociar”. Eu fiquei meio horrorizado com aquilo. Eu vi essas pessoas que ele está falando, que colocou pra negociar. São pessoas que vivem no limite da sobrevivência. São pessoas que vivem uma situação caótica de miséria. Aí este vídeo viralizou e o senador Paulo Paim (PT-RS) me chamou para ir participar de um debate na Comissão de Direitos Humanos.

EC – Você disse que viu as pessoas que estavam sendo “negociadas”. Como assim
Moreira – Na verdade, eu tinha começado a estudar desigualdade. Vivi várias experiências morando em acampamentos e assentamentos do MST e comecei a gravar vídeos comentando temas correlatos à questão. Um deles foi esse do Guedes. Quando eu li a entrevista dele, passei por debaixo de um daqueles viadutos no centro de São Paulo, com um monte de gente escovando os dentes com aquela água que passa do lado da guia. Gravei um vídeo bastante inflamado em relação a isso.

EC – Até então você era um nome desconhecido de grande parte do chamado campo progressista. Era o ex-sócio de um banco promissor, o que trazia credibilidade ao combate ao intento neoliberal do governo. Em algum momento se sentiu um peixe fora d’água?
Moreira – Até hoje eu me sinto um pouco assim. Quando começa essa discussão da desigualdade, começa a virar uma discussão muito pessoal, de partidos e coisas assim. E isto muitas vezes é estranho. Por exemplo, eu briguei com um monte de gente nessa questão agora da ajuda do Banco Central para os bancos. Eu fui completamente contrário e tinha até muitos economistas de esquerda que eram a favor. No começo foi muito difícil. O pessoal do sistema financeiro me achava um traidor e o da esquerda não confiava. Ou seja, eu perdi amigos antigos e nem tinha dado tempo de fazer amigos novos.

EC – Essa pergunta é porque, me parece, que existe realmente de uma parte da esquerda aquela desconfiança que você fala. Logo após que surgiu o Somos 70 por cento, vi numa rede social uma pessoa dizendo que gostou de um vídeo do movimento e, após ter compartilhado, caiu “num funil de vendas” seu, que você o queria “educar em finanças”, mas que, no fundo, você queria mesmo o dinheiro dele. O que me diz disso?
Moreira – Todo mundo pode falar o que quiser. Ainda mais hoje que você tem as redes sociais, né? Graças a Deus, falar é super livre. Mas, na verdade, eu lancei numa live esse Somos 70%. Isso tomou uma proporção com vários grupos no Facebook, Instagram etc., que eu nem faço parte da coordenação. Nem sei quem toca esses grupos. É um negócio absolutamente descentralizado. Eu lancei uma hastag, na verdade.  As pessoas que estão vendo os meus cursos é sinal de que em algum momento elas me pesquisaram, entraram nos meus sites e os algoritmos fizeram elas verem os meus cursos.

 

O capitalismo precisa de freio - entrevista com Eduardo Moreira

O capitalismo precisa de freio - entrevista com Eduardo Moreira

Em 2012, Moreira foi homenageado no Castelo de Windsor pela Rainha da Inglaterra por difundir o método da doma gentil de cavalos

O capitalismo precisa de freio - entrevista com Eduardo Moreira

Eu acho que o capitalismo é indomável. Então,
no capitalismo tem que se colocar restrição.
Não adianta acreditar que as pessoas vão
buscar um capitalismo consciente

EC – Fale um pouco deles.
Moreira − Eu vivo de vender educação financeira. É o meu negócio. Eu ensino para as pessoas como funciona o mercado financeiro. Eu não prometo nenhuma fórmula pra alguém ficar rico, ficar milionário. Pelo contrário. Eu desmonto essas fórmulas e ensino como as pessoas são enganadas no mercado financeiro. No ano passado eu tive 560 mil alunos gratuitos e tive 30 mil alunos pagos. Então os meus alunos pagos financiam os meus alunos gratuitos.

EC – Ranço de esquerda?
Moreira − Eu não tenho uma propaganda. Eu não tenho patrocínio, não monetizo os meus vídeos no Youtube; meu site não tem banner. Então, assim, eu não conheço nenhuma estrutura – nem de esquerda – mais purista do que a minha. Eu entro em site da esquerda e vejo propaganda de venda de relatório desses que ensina a ficar milionário. No meu, não tem isto. Agora, que tem gente da esquerda que fica incomodada quando chega uma coisa nova, isto tem. São os donos dos feudos, não é? Então, por incrível que pareça, tem gente na esquerda que não quer que nada mude. A não ser se mudar pra ela ficar no poder. Na verdade, ela não quer um novo modelo. Ela quer tomar o poder. Essa pessoa também é adversária daquilo em que eu acredito como uma sociedade mais justa.

EC − Você poderia citar um exemplo?
Moreira – Cara, eu acho besteira citar um exemplo específico. É comprar uma briga ruim. A provocação é mais importante do que uma acusação pessoal. É melhor todo mundo pensar: “Será que ele está falando de mim?”. E todo mundo se questionar se faz parte desse grupo. A pergunta deve ser: o projeto pelo qual eu luto é meu ou é nosso?

EC – Em seu livro Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa você afirma que o maior problema do mundo é a desigualdade. Mas, não a desigualdade do senso comum, a história de “uns terem muito mais do que os outros” ou, até mesmo, “injustiça”. Afinal, o que é desigualdade para você
Moreira – A desigualdade para mim é a gente ter uma sociedade onde existe uma dependência enorme e, em alguns casos, total, daqueles que não têm acesso ao capital, que são a maioria, em relação àqueles que concentram quase todo o capital, que são a minoria. Essa é a desigualdade que mais preocupa. Porque se você tem uma desigualdade onde aqueles que têm menos ainda têm condição, capital necessário, de caminhar sozinhos para poder criar, pra poder arriscar, pra poder tentar, pra poder seguir os talentos que eles têm, até dá pra administrar.

EC – Em que sentido essa desigualdade que citou preocupa mais?
Moreira – São dois motivos. Um, ela mantém uma relação de dependência e de quase escravidão daqueles que não têm em relação àqueles que têm; dois, ela não permite – como sociedade – nos tornarmos cada vez mais fortes, explorarmos o potencial para que as pessoas nasceram. É como aquela história bíblica, né? Ela (a desigualdade) faz com que vários talentos estejam enterrados em vez de serem colocados em prática. Ou seja, aquele que nasce com o talento pra ser escritor, tem que ser escritor; violinista, ser violinista; médico, ser médico, sem ter que entregar comida pedalando bicicleta 12 horas por dia.

EC − Já no O que os donos do poder não querem que você saiba, você fala que o capitalismo é “um modelo que depende intrinsicamente da desinformação em massa”. Pode nos falar resumidamente aqui quais são as “duras verdades que os ricos e poderosos buscam esconder?”
Moreira – Eu dou um exemplo no livro. Digo que a vida é igual a um truque de mágica. As pessoas que têm o poder chamam a nossa atenção para tudo que não tem a menor importância, para não prestarmos atenção naquilo que tem importância de verdade. No mercado financeiro é muito isto. Você está feliz porque você está achando que “agora a corretagem é zero” e daí vai lá operar no banco e não vê que dentro dos produtos que você está comprando é praticado uma taxa muito maior do que a corretagem que te era cobrada antes. Você vai lá e compra um título de capitalização, que é um negócio absurdo, e fazem você pagar uma taxa enorme pro banco sem saber. Você vai lá e compra um seguro de vida achando que está fazendo um plano de previdência, porque o cara te vende falando que você está fazendo uma previdência.

O capitalismo precisa de freio --- entrevista com Eduardo Moreira

Foto: Danielle Sampaulo/Divulgação

Foto: Danielle Sampaulo/Divulgação

EC – É como aquela história da carta escondida na manga.
Moreira − Então, essa desinformação que é a que mais me preocupa. Tivemos agora o evento da XP que contratou a Malala pra falar. Caramba! Se a XP quisesse mudar o mundo, em vez de apresentar a Malala, teria um comportamento diferente no mercado financeiro. Não fazia um monte de gente pagar tarifas gigantescas e fazer o povo ficar pobre da noite pro dia porque arriscou mais do que poderia. Então, assim, eu acho que a gente tem uma propaganda que serve a esse mercado. Uma propaganda que quer perpetuar essa atuação absolutamente injusta e covarde.

EC – Falando agora no seu recente trabalho, Economia do desejo – A farsa da tese neoliberal. Você faz uma diferenciação entre necessidade e desejo na economia. Em síntese, qual é essa diferença?
Moreira – Necessidade é aquilo que a gente precisa pra viver com dignidade. Por exemplo, no frio a gente tem necessidade de se aquecer; você precisa morar, daí a necessidade de ter um teto; precisa comer, tem necessidade de se alimentar. Agora, dentro do se alimentar, pra começar a mostrar a diferenciação,  você pode entrar no desejo. Mas, vem cá: eu já estou alimentado, mas tem aqui um presunto cru que custa R$ 200 o quilo. Não, mas calma aí, que dentro desse presunto tem um presunto cru da Itália que é feito com um porco que é amamentado desde pequeno que custa R$ 500; tem o caviar Beluga que custa R$ 10 mil. Então, o desejo não tem fim. Ele não tem limite. Porque o caviar Beluga vai ter a safra, sei lá, 2017, que tomado com uma Veuve Clicquot fica melhor. Enfim, a economia do desejo é aquela que, por definição, não pode saciar aquilo que as pessoas querem. Porque os desejos, todos os textos falam isso, não são saciáveis. Eles têm uma natureza infinita.

EC – O que essas diferenças apontam para seu entendimento sobre desigualdade
Moreira – Uma economia que se baseia no lucro, propositalmente se baseia no desejo e não na necessidade. Se fosse baseada na necessidade, as pessoas chegariam num dado momento em que elas, satisfeitas daquilo que precisam, começariam a ser solidárias. A economia do desejo não pode ter esse sentimento de solidariedade preponderando porque o sentimento de solidariedade preponderando atrapalha o lucro. O lucro vem de você vender uma solução pra uma necessidade que você cria.

EC −Sobre o MST, você tem dito que eles desenvolveram uma economia cuja base é similar à dos países nórdicos, que têm alto índice de desenvolvimento humano. Como assim?
Moreira – O que eu digo é o seguinte: na social democracia você tem muita preocupação com a distribuição da renda, com o pleno emprego, com a universalização da saúde e da educação. E nesses lugares do MST a maior preocupação que vi é exatamente com essas questões para que ninguém seja deixado para trás.  Ou seja, o combate à pobreza é feito através da distribuição ali. Você vê a preocupação com a educação sendo brutal. Quando chegam num acampamento, a primeira coisa que é construído ali é uma escola, antes até da casa das pessoas. Você vê essa preocupação com a qualidade de vida das pessoas e esse sentimento de coletividade, de representatividade. As sociais democracias vieram dos pequenos agricultores, dos pequenos trabalhadores, dos sindicatos, todos eles assumindo posições importantes no poder e dando representatividade àquela que era a população de verdade, que levava os países nas costas.

EC – Mas o MST é meio que demonizado como comunista, não?
Moreira − Então, assim, eu acho que você tem muito mais do MST parecido com isto, com a social democracia, do que as pessoas acham que tem de parecido como um lugar comunista, onde você toma todos os bens. No MST não. As pessoas têm sucessos diferentes, uma consegue ter uma produção que dá mais certo do que a outra; outra tem uma casinha um pouco melhor do que a outra. As pessoas conseguem construir patrimônio ao longo do tempo. Então tem muito menos de comunismo do que as pessoas imaginam e muito mais de social democracia. E isto me foi dito por um europeu que estava trabalhando no MST como consultor da agroindústria que eles têm de leite. Então, não foi nem dito por mim.

EC −Em 2012 você foi homenageado no Castelo de Windsor pela Rainha da Inglaterra por difundir o método da doma gentil de cavalos. Para finalizar, dá para domar gentilmente o capitalismo?
Moreira – Putz! Acho que não tem como domar, sabe? Eu acho que o capitalismo é indomável. Então, no capitalismo tem que se colocar restrição. Não adianta acreditar que as pessoas vão buscar um capitalismo consciente etc. É claro que se a gente seguir uma trajetória de espiritualidade, de autodesenvolvimento, de autoconhecimento, daqui uns 500 anos talvez a gente esteja mais evoluído internamente. Mas hoje em dia o capitalismo precisa de freio. Freio! Se você não colocar limites no capitalismo ele funciona na regra da Economia do Desejo. A regra onde o objetivo é você ter mais, independente de quanto você tenha. E quando você tem recursos escassos e finitos, isso nunca acaba bem.

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