ECONOMIA

Qual será o futuro do BNDES no governo Lula

Protagonista do Milagre Econômico e de campeãs nacionais como a Embraer, banco foi usado para financiar privatizações e virou figurante na lógica ultraliberal em benefício do mercado privado
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 27 de dezembro de 2022

Foto: Valter Campanato/ Agência Brasil

Lula adiantou o que espera de Mercadante à frente do BNDES: “alguém que pense em desenvolvimento, em reindustrializar esse país, em inovação tecnológica, em financiamento ao pequeno, médio e grande empresário. As privatizações acabaram”

Foto: Valter Campanato/ Agência Brasil

Na recente divulgação dos relatórios dos grupos temáticos que se reuniram para apresentar ao futuro governo que assume o comando do Brasil em 1º de janeiro, a falta de um documento em especial chamou a atenção de economistas.

O que trata ou que pelo menos deveria falar sobre o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Uma diretriz, no entanto, parece ter ficado clara nas palavras do próprio presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “Vai acabar as privatizações nesse país. Já privatizaram quase tudo, mas vai acabar e vamos provar que algumas empresas públicas vão poder mostrar a sua rentabilidade”, disse Lula no plenário da sede dos trabalhos da transição no Centro Cultural do Banco do Brasil, em Brasília, no início de dezembro.

Inspirado e sem maiores temores do que dias antes chamou de nervosismo do “tal mercado”, o presidente deixou claro que as pressões do pessoal conhecido por se instalar em vistosos edifícios da Faria Lima, em São Paulo, não iriam abalar suas convicções.

Irônico, Lula anunciou diante de uma plateia repleta de jornalistas e integrantes dos grupos de transição o nome do economista, ex-senador e ex-ministro da República, Aloísio Mercadante, como futuro presidente da instituição. O banco foi fundado há mais de 70 anos, precisamente no dia 20 de junho de 1952, e sua manutenção é expressa na Constituição brasileira.

“Ouvi críticas sobre boatos de que você vai ser presidente do BNDES. Eu quero dizer para vocês que não é boato. O Aloizio Mercadante será presidente do BNDES”, enfatizou Lula, reforçando o que pretende implementar no principal banco de fomento do país.

“Estamos precisando de alguém que pense em desenvolvimento, de alguém que pense em reindustrializar esse país, em inovação tecnológica, em financiamento ao pequeno, médio e grande empresário”, sinalizou.

Expectativas

Foto: PRodrigues/ Divulgação

“Mercadante é uma pessoa que se associa muito a políticas desenvolvimentistas”, avalia Koblitz, do Conselho de Administração do BNDES e presidente da Associação dos Funcionários

Foto: PRodrigues/ Divulgação

Para o economista Arthur Koblitz, presidente da Associação dos Funcionários do BNDES e membro titular do Conselho de Administração do banco, a expectativa é que haverá muitas convergências e retorno do papel estratégico da instituição no fomento da economia brasileira.

“O (atual) presidente (Gustavo Montezano) é um desconhecido, amigo dos filhos do Bolsonaro, sem expressão que, na realidade, não passa de um assessor do Guedes dentro do BNDES. Agora, deveremos ter um dos principais quadros do partido do presidente da República. Lógico que isto vai dar prestígio ao BNDES. Mercadante é uma pessoa que se associa muito a políticas desenvolvimentistas”, comemora.

Ele se diz convicto de que as políticas que deverão ser implementadas no terceiro mandato de Lula serão diametralmente opostas ao processo que desde 2017 vem fazendo o BNDES represar recursos para pagar empréstimos de forma antecipada à União, mas que deveriam ser destinados ao fomento de empresas nacionais.

Cobranças são ventiladas nos mais variados espaços ocupados pelo mercado financeiro.

Paulo Rabello de Castro, Presidente do BNDES durante o governo de Michel Temer, por exemplo, já afirmou que Lula precisa definir as prioridades em relação aos investimentos da instituição.

“O problema é que esse futuro governo ainda não sinalizou quais serão essas políticas prioritárias. O Brasil continua sem pauta”, disse o economista.

Cabe lembrar que Castro participou de um mandato que prometeu, mas não entregou empregos após a reforma trabalhista e que – em nome da austeridade fiscal – criou um teto de gastos que praticamente inviabilizou serviços essenciais como saúde e educação no país.

Na realidade, a pressão vem de todos os lados. Sobre Mercadante, Koblitz, diz entender a série de movimentos que está fazendo para “se apresentar”, diante da série de reações negativas do mercado à sua indicação.

“Mas, não adianta. Ou você vai agradar esses caras ou você vai botar o Brasil para frente. As duas coisas são bem complexas”, sinaliza.

O maquiavelismo do mercado sensível

Em um ambiente no qual toda manifestação pode ser usada para especulação financeira, o silêncio muitas vezes é uma estratégia.

Poucos querem falar sobre o futuro do BNDES e os que falam, em sua maioria, pedem que seus nomes sejam declinados.

Não foi gratuita a ironia que Lula fez quando lembrando da série de medidas tomadas por Bolsonaro em sua desesperada corrida para a reeleição.

“Nunca vi um mercado tão sensível”, disse o presidente eleito depois da reação do mercado financeiro à sua fala na qual questionou a lógica do mercado e a austeridade.

“Por que, toda hora, as pessoas falam que é preciso cortar gastos, que é preciso fazer superavit, que é preciso fazer teto de gastos? Por que as mesmas pessoas que discutem teto de gastos com seriedade não discutem a questão social neste país?”, questionara Lula.

Uma das fontes que pediu anonimato ao Extra Classe é um agente que atua no próprio sistema financeiro privado.

Segundo esse operador do mercado, a preocupação com o restabelecimento da política dos campeões nacionais que consistia na escolha de empresas dos segmentos com potencial de alta competitividade internacional, incorporada na figura de Mercadante, na realidade é uma falácia.

“O sistema financeiro gosta de privatizações. É dinheiro que rola na venda das empresas; são comissões que se abrem”, revela.

Outra questão espinhosa será a retomada do protagonismo do BNDES. Koblitz aponta uma atuação praticamente maquiavélica nos últimos seis anos.

Primeiro, lembra, o governo Temer alterou a taxa básica de juros do BNDES em 2017. Era Taxa de Juro de Longo Prazo (TJLP) e passou a ser Taxa de Longo Prazo (TLP).

Isso, segundo o economista, praticamente alinhou as taxas praticadas pelo BNDES às dos grandes bancos privados e tornou a instituição menos competitiva.

“No fundo, um banco de desenvolvimento é uma espécie de alocador de subsídios. Ele tem de colocar um dinheiro assim, digamos, mais barato, para estimular o investimento do capitalista em um ou outro determinado setor considerado prioritário para o desenvolvimento da economia”, explica.

Ele lembra ainda que, mesmo variando de país para país, todos os bancos de fomento têm alguma espécie de incentivo para sua atuação.

Um exemplo entre outros, aponta, é o alemão Kreditanstalt für Wiederaufbau (KfW), que em tradução livre seria algo como uma Corporação de Empréstimo para Reconstrução, isenta de pagamento de tributos devido a sua ação importante para o fomento da economia liberal germânica.

Os custos dos empréstimos mais próximos dos praticados no mercado e uma mudança da política de desembolsos do banco fez com que a participação do BNDES na composição do financiamento das empresas recuasse de 18,3%, em 2015, para 7,2%, em setembro de 2022, de acordo com o Centro de Estudos de Mercado de Capitais (Cemec).

Pensamento ultraliberal

Foto: Igor Sperotto

BNDES foi usado no governo Temer para financiar até 80% dos projetos privados, com taxa de juros de longo prazo (TJLP) e períodos de até 20 anos. Sob Paulo Guedes, virou balcão de negócios

Foto: Igor Sperotto

A cereja do bolo de um pensamento ultraliberal que entende não ser necessário um BNDES, que tem que dar espaço para o mercado atuar, revela Koblitz, foi o governo federal obrigar o banco a devolver R$ 440 bilhões que pegou emprestado do Tesouro Nacional entre os anos de 2008 e 2018.

“Anteciparam o pagamento. Pagaram 30 anos antes ou mais o que deveria ser pago para o tesouro. Tudo isso com apoio institucional, abençoado pelo Tribunal de Contas da União (TCU); o mesmo que fundamentou o impeachment da Dilma com a história das pedaladas que violariam a responsabilidade fiscal”.

Na opinião de Koblitz, a antecipação do pagamento da dívida, que foi uma espécie de capitalização feita com empréstimos de longo prazo para que o banco pudesse fomentar a economia, é que foi, sim, claramente uma violação da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Para dar uma ideia da irresponsabilidade, “um caso concreto: a usina de Belo Monte”, cita Koblitz. “Só vai pagar tudo o que pegou emprestado do BNDES em 2040″.

O BNDES devolveu o que pegou emprestado, além do que já paga de impostos e dividendos, e vai ter que antecipar para o governo federal antes de receber o que emprestou para os empresários que ergueram a usina”, explica.

E não para por aí. “Até este ano tinham ficado ainda uns R$ 80 bilhões no banco. O que que eles fizeram? Este ano, perto das eleições, por muita pressão do Paulo Guedes, foi decidido que o BNDES teria de devolver esses recursos, mesmo que tivesse prejuízo. Já foram devolvidos agora R$ 45 bilhões e, para o ano que vem, há a previsão de mais R$ 24 bi a serem devolvidos”, denuncia Koblitz.

Paulo Guedes, aliás, desde que iniciou o governo Bolsonaro buscou formas de diminuir a importância do BNDES.

“Ele tentou acabar com os repasses constitucionais ao banco. O BNDES está na Constituição. O Paulo Guedes tentou tirar o BNDES da Constituição”, lamenta Koblitz.

Em todas as brechas possíveis, lembra o economista, o Posto Ipiranga de Bolsonaro tentou efetivar seus planos. No início, na reforma da Previdência e mais recentemente na votação da PEC Emergencial.

Tanto bateu que chegou a conseguir reduzir os 40% dos recursos que devem ser destinados ao BNDES do PIS-Pasep para 28%.

Operação desmonte muda foco de investimento

Para outro agente financeiro ouvido pelo Extra Classe na condição de anonimato, no final das contas, o conceito ideológico de Guedes “só tem o objetivo de favorecer o sistema financeiro privado; é para vender debentures, para se ganhar comissão nas vendas de ações”.

Mas, se de um lado toda a operação de desmonte iniciada em 2017 debilitou o banco em sua função principal que é o fomento de setores estratégicos a taxas baixas, o aumento do valor dos recursos emprestados acabou ajudando o BNDES a devolver os recursos para o Tesouro sem maiores problemas de liquidez.

“O BNDES não estava desembolsando porque não estava mais sendo procurado como antes”, explica Koblitz.

Em paralelo, outra ação que também “ajudou” o banco a não ter problemas de liquidez, foi a determinação da venda de R$ 90 bilhões da carteira de ações da BNDES Participações (BNDESPar), braço de participação do banco em empresas que se mostram atrativas para o investimento e giro do capital para reutilização na atividade fim de fomento.

Mas, até aí, há uma névoa pairando no ar. “As ações, em especial da Vale, foram vendidas em grande quantidade durante a pandemia por valores bem abaixo do que chegaram a alcançar. “Venderam em agosto e novembro de 2020 por cerca de R$ 60,00 e, em maio de 2021, elas chegaram a R$ 120,00”, finaliza Koblitz.

Ironicamente, após seis anos do golpe que afastou Dilma Rousseff, o BNDES que nos anos 1970 era conhecido como o grande banco das estatais para financiar o Milagre Econômico, que passou pela década de 1990 financiando a privatização de empresas públicas com crédito subsidiado, chega ao fim do governo Bolsonaro como uma espécie de consultor de projetos de desestatização e mudando o seu foco de financiamento para os segmentos de micro, pequenas e médias empresas (MPMEs).

Virtude forçada e investimento em saneamento privado

Engana-se quem acha que a ampliação ofertada foi por virtude do governo que se encerra em 31 de dezembro. Foi exatamente por causa dos recursos do BNDES que diminuíram drasticamente.

A suspensão das linhas de crédito do plano Safra em agosto para pequenos produtores por falta de recursos no final de outubro tornaram isso evidente.

Isso não impediu, no entanto, que no apagar das luzes do governo Bolsonaro, o BNDES assinasse no último dia 16 um contrato de financiamento com a Águas do Rio, concessionária da Aegea na cidade do Rio de Janeiro.

No valor de R$ 19,3 bilhões, o financiamento de longo prazo se direciona para investimentos em abastecimento de água e esgotamento sanitário nos 27 municípios que fazem parte da área de atuação da Águas do Rio no estado Fluminense.

Quatro dias após, 20, a Aegea arrematou em uma proposta única de R$ 4,151 bilhões a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) em leilão realizado em São Paulo, na sede da B3.

Líder em saneamento básico do setor privado no Brasil, a Aegea acrescentou um ágio de 1,15% em relação ao valor mínimo estipulado no edital do governo do estado do Rio Grande do Sul.

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