JUSTIÇA

Advocacia-Geral da União questiona criminalização da LGBTfobia

Ação pede esclarecimentos sobre o alcance do julgamento de junho de 2019 que decidiu equiparar atos de homofobia e transfobia a crime de racismo
Por Gilson Camargo* / Publicado em 16 de outubro de 2020
No dia 13 de junho de 2019, por 8 votos a 3, o STF aprovou a criminalização da homofobia e da transfobia – decisão que agora é questionada pela Advocacia-Geral

Foto: Tânia Rêgo/ Agência Brasil

No dia 13 de junho de 2019, por 8 votos a 3, o STF aprovou a criminalização da homofobia e da transfobia – decisão que agora é questionada pela Advocacia-Geral

Foto: Tânia Rêgo/ Agência Brasil

A Advocacia-Geral da União (AGU) ingressou no Supremo Tribunal Federal (STF) com embargos de declaração contra a decisão do plenário do Supremo que determinou que a LGBTfobia se tornasse um crime equivalente ao racismo. O recurso visa a esclarecer o alcance do julgamento que equipara a homofobia e a transfobia ao crime de racismo – inafiançável. O questionamento foi protocolado no dia seguinte ao afastamento do ex-ministro Celso de Mello, que se aposentou no dia 13. Mello era o relator da ação na corte em 2019. O voto dele foi um marco de defesa de direitos de minorias pela corte.

Questionamento ao STF ocorreu no dia seguinte à aposentadoria do ex-ministro Celso de Mello, relator da decisão

Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Questionamento ao STF ocorreu no dia seguinte à aposentadoria do ex-ministro Celso de Mello, relator da decisão

Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Os crimes motivados por orientação sexual ou identidade de gênero não contavam com tipificação penal específica no país. Em junho de 2019, o STF decidiu que crimes de discriminação contra pessoas lésbicas, gays, bissexuais e trans devem ser equiparados ao crime de racismo até que o Congresso Nacional crie legislação específica. A pena é de até três anos e os crimes de homofobia e transfobia são inafiançáveis e imprescritíveis, a exemplo do crime de racismo.

Em meio ao avanço, os ministros do STF fizeram passar um “jabuti”. A fim de preservar a liberdade de crença, entenderam que religiosos não poderão ser punidos por racismo ao manifestarem suas convicções doutrinárias sobre orientação sexual, desde que as manifestações em questão não configurem discurso de ódio.

As hipóteses de excludente de ilicitude atualmente restritas ao exercício da liberdade religiosa devem ser ampliadas para contemplar os diversos aspectos da liberdade de expressão, anotou o advogado-geral da União, ministro José Levi Mello do Amaral Júnior no recurso encaminhado ao STF. “É importante que se esclareça, como tese de julgamento, que não só a liberdade religiosa, mas a própria liberdade de expressão, considerada genericamente –, englobando a manifestação artística, científica ou profissional –, respalda a possibilidade de manifestação não aviltante a propósito da moralidade sexual”, frisa a AGU.

 

O ministro José Levi, da AGU, quer exceções que relativizam a cultura de discriminação, violência e segregação que se instalou no país sob Bolsonaro

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

O ministro José Levi, da AGU, quer exceções que relativizam a cultura de discriminação, violência e segregação que se instalou no país sob Bolsonaro

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Na petição enviada à corte, a Advocacia também solicitou que não seja considerado crime de homofobia ou transfobia a exclusão de membros de organizações religiosas por aplicação de seus respectivos códigos de conduta; e atos que controlem, com base em critérios de gênero, acesso a espaços de convivência pública, como banheiros, vestiários e vagões no transporte público. Também pediu que seja justificada a divulgação de teses em meios acadêmicos, midiáticos ou profissionais de toda e qualquer ponderação acerca dos modos de exercício da sexualidade, bem como objeções por motivo de convicção filosófica ou política.

No entendimento da Advocacia-Geral, a proteção dos cidadãos identificados com LGBT não pode criminalizar a divulgação de toda e qualquer ponderação acerca dos modos de exercício da sexualidade. “Assim como a reflexão relativa a hábitos da sexualidade predominante deve ser garantida, também é necessário assegurar liberdade para a consideração de morais sexuais alternativas, sem receio de que tais manifestações sejam entendidas como incitação à discriminação”, ressalta o texto.

Associação e Cidadania acusam AGU: litigância e má fé

"É lamentável que a AGU, que é órgão de Estado e não de governo, se preste a defender um "pseudodireito" a discriminar", diz o advogado Paulo Iotti

Foto: Alesp/ Divulgação

“É lamentável que a AGU, que é órgão de Estado e não de governo, se preste a defender um “pseudodireito” a discriminar”, diz o advogado Paulo Iotti

Foto: Alesp/ Divulgação

A Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) solicitou ao STF a condenação da AGU por litigância de má-fé e ratificou embargos declaratórios opostos aos apresentados pela entidade. A ação é em conjunto com o partido Cidadania. A entidade afirmou que os argumentos apresentados pela Advocacia da União visam apenas garantir o direito de “segregar pessoas LGBTI+ de espaços em geral, tais como vagões, banheiros e outros, para o fim de supostamente preservar a ‘intimidade’ das pessoas ali presentes, à luz de crenças religiosas”.

A associação sustenta que “a alegação da AGU de suposta ‘contradição interna’ do reconhecimento de uma omissão inconstitucional ao mesmo tempo em que ela é afastada por interpretação conforme a Constituição configura, na melhor das hipóteses, pura e simples ignorância caracterizadora de verdadeira inépcia profissional, por desconhecimento do significado basilar deste relevante instituto de controle de constitucionalidade (algo inadmissível na Advocacia-Geral da União), ou, na pior, pura, simples e genuína má-fé, no mínimo enquanto violação do princípio da boa-fé objetiva”.

Já o advogado Paulo Iotti, que assina a ação do Cidadania e da ABGLT, é “lamentável que a AGU, que é órgão de Estado e não de governo, se preste a defender um “pseudodireito” a discriminar. Ela muito evidentemente quer uma “carta em branco” para que pessoas se limitem a alegar liberdade religiosa para poderem discriminar pessoas LGBTI+”.

“Precisam aprender que liberdade de expressão não é liberdade de opressão, como dizemos no Movimento LGBTI+, e que o STF já afirmou que liberdade de expressão e religião não permitem discursos de ódio, entendidos como os que incitam a discriminação, a violência e a segregação”, explica Iotti, que é Doutor em Direito Constitucional diretor-presidente do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADvS).

*Com informações da AGU, STF e agências.

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