JUSTIÇA

No presídio, a mulher é condenada à solidão

Dificuldades para manter vínculos com o mundo fora da prisão fazem com que as mulheres presas sofram mais dificuldades no cumprimento da pena
Por Amanda Bormida, Eduarda Ferreira, Giulia Godoy, Paola De Bettio e Yasmim Borges / Publicado em 24 de julho de 2023

No presídio, a mulher é condenada à solidão

Foto: Olha pra elas/Panda Filmes/Reprodução

Foto: Olha pra elas/Panda Filmes/Reprodução

Com um sorriso tímido, uma voz acanhada, seus cabelos castanhos presos e cerca de 1,65m de altura, Cecília (nome fictício) entra na sala onde já estávamos entre cinco pessoas. Ela vestia uma camisa branca e uma calça laranja, a única opção de roupas permitida para ela há dois anos e quatro meses. Aos 45 anos, é uma das 315 mulheres que cumprem pena na Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba (PEFG).

Envergonhada pela situação, Cecília conta que foi presa em Santa Catarina quando voltava de uma viagem com o então namorado.

“Ele disse para mim que ia em um leilão de carros no Paraná com um amigo. E eu, muito ciumenta, não acreditei, e achei que ele ia levar outra mulher. Então fui junto na viagem.  Na volta, ele veio com o carro recheado de drogas. Aí até explicar que eu não tinha nada a ver com aquilo, já estou presa há 2 anos e 4 meses”, afirma.

“Fui nessa viagem para conhecer as praias de Santa Catarina, nunca tinha saído do Rio Grande do Sul. Então aproveitei que a minha guria estava com o pai dela. Ainda convidei ela para ir junto, ainda bem que ela decidiu ficar com o pai, já que eles também iam viajar. Lembro que a gente se despediu em um domingo e eu disse que até quarta ou quinta-feira estaria de volta. E não voltei até agora”, conta, emocionada.

Cecília é uma das 45.436 mulheres presas no país, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de 2022. Os dados  apontam um aumento considerável de mulheres em privação de liberdade entre os anos 2020 e 2021: 7,24%. Já de 2017 para 2018 foi de 2,0%.

Ainda segundo o anuário, o principal motivo que leva as mulheres ao encarceramento no país são delitos relacionados ao tráfico de drogas. Outro dado comprova a informação: Um levantamento do Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias) de junho de 2022, aponta que 68% das mulheres presas no Rio Grande do Sul cumprem pena inicial de até 6 meses e 46% respondem por tráfico de drogas, enquadradas nos Art. 12 da Lei 6.368/76 e Art. 33 da Lei 11.343/06.

A primeira  reportagem desta série trouxe os depoimentos de dois companheiros de mulheres presas também na PEFG, por tráfico, assim como Cecília. Conforme a direção da penitenciária,  cerca de 60% das mulheres recolhidas no local estão ali pelo mesmo motivo.

“Em geral o casal trafica, ou o homem toca o negócio e a mulher faz parte. Aí normalmente o homem vai preso primeiro, se não vão os dois juntos, e a mulher fica um pouco mais na rua até cair também”, afirma a diretora Isadora Minozzo.

No presídio, a mulher é condenada à solidão

Foto: Yasmim Borges

Da esquerda para a direita: Caroline Araújo, Assistente Social, Roscielen Moraes, Diretora Adjunta e Isadora Minozzo, Diretora da Penitenciária, posam para a foto

Foto: Yasmim Borges

A detenta que conversou com a reportagem representa uma exceção das mulheres encarceradas, visto que concluiu o Ensino Médio, trabalhava como funcionária pública e, apesar de não ter recebido visitas presenciais na prisão, mantém, de alguma forma, bons vínculos familiares.

No entanto, ela também está presa por causa do companheiro, assim como tantas outras que acabam encarceradas por causa dos crimes dos parceiros, irmãos e familiares. Cecilia também foge da média de idade das demais detentas da PEFG, tendo 45 anos. Conforme os dados solicitados à Susepe para essa reportagem, através de um pedido de LAI – Lei de Acesso a Informação – 77.46% das presas da Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba têm idade entre 19 e 39 anos.

Concursada, quando foi chamada já estava presa

Natural de Novo Hamburgo/RS, Cecília era agente de infraestrutura concursada desde 2011 e nunca imaginou que um dia seria presa.

“Eu não sou do mundo do crime. Caí de paraquedas aqui. Eu tinha passado em um novo concurso, para agente de saúde, então me exonerei e pensei em ficar um tempo em casa, com a minha filha, até assumir o novo cargo. Eu estava bem de dinheiro e podia esperar tranquilamente. Só que na data que era pra eu assumir eu já estava presa”, explica.

Cecília é uma das 35 mulheres presas na instituição que possuem o Ensino Médio completo, o que representa um pouco mais de 11% do total de presas.

Depois de um ano e um mês detida em uma penitenciária de Santa Catarina, Cecília conseguiu uma transferência para a PEFG, com a intenção de ficar mais perto da família. Mas a vinda para a região metropolitana de Porto Alegre, ainda não resultou em visita. Mesmo tendo duas irmãs e uma boa relação com o ex-marido, ela está há dois anos e quatro meses sem que uma única pessoa próxima tenha ido abraçá-la.

“Algumas aqui tem visita, mas eu não tenho porque a minha filha não consegue vir por causa do trabalho. Ela disse também que não está preparada psicologicamente para vir aqui me ver. Mas ela está do meu lado, me apoiando”, afirma a detenta. Cecília diz que a saudade só não é maior por causa das vídeo-chamadas com a filha, uma vez ao mês.

“A minha relação com a minha filha era bem próxima, sabe? Eu me separei do pai dela quando ela tinha um ano e um mês, e desde então, estávamos sempre juntas. Eu sempre tive com ela uma relação de amizade e confiança. Tudo o que a minha mãe não foi comigo eu tentei ser com ela. E vou continuar sendo”, afirma esperançosa. A filha, de 20 anos, atualmente mora com o pai em Campo Bom.

Família tem vergonha ou receio de visitar

De acordo com a assistente social do Presídio de Guaíba, Caroline Araújo, a vergonha ou o receio de familiares visitarem pessoas queridas no sistema prisional é um sentimento comum e influencia no abandono.

“Elas são abandonadas em vários aspectos, e da família é muito gritante, realmente. A gente tenta fazer esse elo, esse contato com os familiares”, explica.  Uma das demandas mais solicitadas pelas detentas é a tentativa de contato com a família.

Ao longo de mais de cerca de 40 minutos de conversa com a reportagem, Cecília só falou da família.

“Sinto muita saudade do meu pai, porque ele faleceu enquanto eu já estava aqui dentro do sistema. Sei que estaria vindo me visitar porque ele foi até a Penitenciária de Santa Catarina para tentar me ver, mesmo estando doente, mas não deixaram ele entrar por causa do covid”, conta.

“Eu tinha até um e-mail que ele me mandou na época, imagina, com setenta e poucos anos. O e-mail dizia: ‘filha, não pude entrar, mas enfim conheci um monte de lugar bonito. A Daniela (minha irmã) foi reclamando durante a viagem toda porque a gente teve que gastar’. Essa é a lembrança que eu tenho. Mas aí teve uma intervenção lá no presídio, que é quando a polícia entra. Nos presídios de Santa Catarina não tem drogas e nem telefone, só que tem muito bilhetinho, e eles tinham muito receio de que as detentas ficassem mandando bilhetinhos para as facções na rua. Então, nesse dia da intervenção levaram as cartinhas do meu pai embora”, relembra.

A dirigente do Núcleo de Defesa em Execução Penal (Nudep) e Defensora Pública, Cintia Luzzatto, conta que foi aberto um valor de 30 milhões pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) para as defensorias de todo o Brasil apresentarem projetos de acordo com suas demandas: “A nossa defensoria aqui no estado foi uma das selecionadas para fazer um projeto de atendimento, nós restringimos às mulheres e ao público LGBT+, agora estamos quase chegando na fase de contratação de pessoal”.

A defensoria pretende contratar assistentes sociais e estudantes de direito para fazer todo um trabalho de atendimento das pessoas encarceradas. Ele visa também a visitação virtual, então justamente para fazer essa aproximação entre a mulher e os seus filhos e seus familiares.

Como a primeira reportagem desta série trouxe, de acordo com as informações da Susepe,  no ano de 2022, cada homem preso no Presídio Central recebeu em média 24 visitas, ou seja, duas por mês. Já na PEFG, no mesmo ano, foram apenas oito visitas por detenta, em média. Isso significa que as detentas não chegam a nem uma por mês. Em 2021, o número de visitas era ainda menor, em torno de três por detenta.

Esperançosa em relação ao futuro, Cecília conta que seu maior sonho atualmente é abrir o próprio negócio.

“Como eu aprendi muitas coisas fitness com os cursos aqui, eu tenho muita vontade de fazer aquelas marmitas com coisinhas mais light para vender. Sei que não vou conseguir logo de cara, mas eu vou conseguir! E depois, quando puder, quero voltar a estudar”, conta.

“Quando eu sair, a princípio se eu for de monitoramento eletrônico, o pai da minha filha vai me ajudar. Tem os pais dele que são velhinhos e minha filha disse que de repente eles vão precisar de alguém para ajudar nos cuidados. Mas eu não posso contar só com isso. Então a psicóloga daqui, a dona Natana, falou que agora tem o escritório social, que tem empresas que ajudam quem está no sistema e vai sair, a arrumar um emprego.  Parece que a empresa ganha um desconto no imposto de renda por ajudar as pessoas com vínculo empregatício. Quando ela falou isso ela falou olhando pra mim, então acredito que eu vou conseguir. Eu sei cozinhar, sei trabalhar com faxina, sou bem culta, até inglês eu sei um pouquinho”, conta.

Organização interna da casa prisional

Além da capacidade da penitenciária, idade e grau de escolaridade, esta reportagem também solicitou dados que dizem respeito à, estado civil, número de filhos e motivo da prisão das detentas. Os dados sobre os crimes não puderam ser comprovados, visto que 234 das mulheres não tiveram o crime especificado na tabela recebida através do pedido de LAI. Em relação aos motivos das prisões, a Susepe respondeu – via Lei de Acesso – que das presas, 234 estão com a informação do crime como “incompleto”.

As outras detentas estão presas por motivos diversos, desde crimes contra o meio ambiente, falsidade ideológica e até crimes contra o estatuto da criança do adolescente, entre outros tantos.

A casa prisional se divide em quatro galerias, e elas se dividem pelo momento do cumprimento da pena que as detentas se encontram, de acordo com a direção da PEFG. Em teoria, Guaíba recebe as que já tem condenação. Essa é a regra geral, mas há exceções – que variam muito de acordo com o perfil das apenadas.

A escolaridade apresenta um dado expressivo: 53,02% das detentas não concluíram o Ensino Fundamental. Três delas são analfabetas, e cinco são apenas alfabetizadas. Juntas, essas oito mulheres somam 21 filhos. 71,75% das detentas têm um ou mais filhos. Somente uma delas possui nove. Dentro da penitenciária há uma escola e professores. Cerca de 90 detentas estudam diariamente, por vontade própria.

“90 detentas representam quase 30% do total de recolhidas, quase um terço das apenadas estudando, isso é um número muito bom. Mas foi uma construção. Em 2021 a gente tava enfrentando a pandemia e praticamente não tinha aula, era a distância, as professoras entregavam uma apostila, se reuniam só pra fazer as provas. 2022 a gente já melhorou esses números, mas girava em torno de 50, ou menos”, explicou Isadora Minozzo.

Em relação ao estado civil, 77% das detentas são solteiras. O resto se divide em “amigada”, “casada”, “divorciada”, “viúva” e “separada”.

Segundo Renato Dornelles, pesquisador e codiretor do documentário “Olha para Elas”, que retrata a situação no sistema carcerário do RS, esses números podem ajudar a explicar o abandono familiar dessas mulheres, já que o perfil da maioria das presas no Rio Grande do Sul – e no Brasil – é o mesmo: mulher solteira, mãe e chefe de família.

“A grande maioria das detentas que ouvimos durante as filmagens do documentário não recebe essas visitas. Elas relataram abandono por parte de companheiros, que por vezes também se encontram presos. Também acontece o abandono por parte de mães, em alguns casos por elas não terem condições de ir às prisões. E dos filhos dessas presas, que na maioria das vezes não têm quem os leve para visitá-las”, comenta.

À época da reportagem, Cecília estava para entrar no regime semiaberto. Ela obteve remissão de cinco meses da sua pena por conta do seu trabalho na penitenciária e por participar de muitos projetos e oficinas.

 

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Esta reportagem foi realizada na disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da Universidade do Vale do Rio do Sinos – Unisinos, sob a supervisão da professora Luciana Kraemer, no primeiro semestre de 2023.

O Extra Classe e a Unisinos firmaram Termo de Cooperação, no início de 2022, para a veiculação no jornal de reportagens produzidas pelos estudantes da disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da instituição e o acompanhamento dos estudantes na produção das edições mensais impressas do Extra Classe.

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