MOVIMENTO

Ministros incorporam ideias do Escola sem Partido

Censura e perseguição a professores podem virar política para a educação no governo Bolsonaro com medida anunciada por ministérios
por Gilson Camargo / Publicado em 10 de dezembro de 2019
Mais um ataque aos professores. Acompanhada do ministro da Educação, Abraham Weintraub, Damares anunciou no dia 19 de novembro, em Belo Horizonte, a criação de um canal de denúncias contra professores

Foto: Gabriel Jabur/MEC

Mais um ataque aos professores. Acompanhada do ministro da Educação, Abraham Weintraub, Damares anunciou no dia 19 de novembro, em Belo Horizonte, a criação de um canal de denúncias contra professores

Foto: Gabriel Jabur/MEC

A ministra Damares Alves, titular do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo de Jair Bolsonaro (PSL) quer a ajuda de pais e alunos na sua cruzada contra professores que ela imagina empenhados em atacar a moral, a religião e a ética familiar em sala de aula. Em mais um ataque aos professores, acompanhada do ministro da Educação, Abraham Weintraub, Damares anunciou no dia 19 de novembro – durante uma audiência pública na Assembleia Legislativa de Belo Horizonte, sobre suicídio e automutilação entre jovens – a criação de um canal de comunicação entre a comunidade escolar e o governo para a formalização de denúncias contra professores “subversivos”. Para a ministra, temas como sexo devem ser tratados “como era há muitos anos atrás quando eu era criança”.

A nova estratégia de perseguição aos docentes, caso venha a se concretizar, promove a continuidade das ideias do movimento político Escola sem Partido (ESP). Criado em 2004 pelo advogado Miguel Nagib, a pretexto de combater “o uso das escolas e universidades para fins de propaganda ideológica, política e partidária”, o ESP atenta contra a liberdade de aprender e ensinar ao defender de maneira explícita o cerceamento da liberdade de cátedra e promover a perseguição a professores.

Projetos de lei apresentados em âmbito nacional, estaduais e municipais com amplo apoio de partidos políticos de direita e do Movimento Brasil Livre (MBL) foram sistematicamente derrotados no Legislativo e o STF considerou o movimento inconstitucional. Depois do arquivamento de um projeto que tramitava na Câmara dos Deputados, Nagib anunciou o encerramento das atividades do movimento a partir de agosto deste ano, mas a deputada Bia Kicis (PSL-DF) promete instalar uma comissão especial para recolocar em pauta o seu Projeto de lei 246/2019. Na justificativa do PL, ela afirma que “não existe liberdade de expressão no exercício estrito da atividade docente”.

ARGUMENTO FALSO – Ao anunciar a incorporação das ideias do ESP nas políticas públicas do governo para a educação, a ministra alegou que a proposta do canal a ser criado é a defesa da lei. “O canal está sendo formatado entre os ministérios da Educação e dos Direitos Humanos. Vai ser anunciado em breve”. Nos seus argumentos, no entanto, Damares distorceu completamente o conteúdo de um tratado internacional do qual o Brasil é signatário e se utilizou de um argumento falso (se confrontado com o texto original), para manipular a audiência. “O que queremos é somente o cumprimento da lei. O Brasil é signatário do Pacto de São José da Costa Rica. Lá está dizendo que a escola não pode ensinar nada que atente contra a moral, a religião e a ética da família”, justificou. Adotada e aberta a assinaturas dos países na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em San José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, a convenção mencionada pela ministra foi ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992. Seu conteúdo não faz qualquer referência ao papel da escola ou da educação como dever do Estado, já que o Pacto trata das liberdades e direitos individuais. A ministra omitiu justamente os trechos do tratado que tratam da “liberdade de expressão, reunião e manifestação com fins ideológicos, religiosos, políticos, econômicos, trabalhistas, sociais, culturais, desportivos ou de qualquer outra natureza”.

A íntegra do documento pode ser acessada aqui.  

Governo valoriza a estupidez, diz CNTE

A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) divulgou no dia 22 uma moção de repúdio às manifestações da ministra e qualificou a iniciativa como “mais uma atrocidade que, de forma recorrente, os gestores públicos do governo Bolsonaro cometem contra a educação e os/as educadores/as brasileiros/as. Um governo que valoriza a estupidez e a violência não poderia mesmo escolher outro alvo de seus ataques que não a educação”.

A entidade alerta que a escola deve ser um ambiente de liberdade por parte dos educadores e educandos, onde devem ser assegurados respeito, admiração, reciprocidade e trocas permanentes entre o professor e estudante em sala de aula. “Assim é no mundo inteiro e, até aqui, esse é o melhor modo pelo qual a autoridade do/a docente se constrói junto às crianças e jovens. Mas o governo que se esmera em dar dignidade aos ignorantes e cargos aos indigentes não pode se prestar a valorizar a educação. Os ataques aos profissionais da Educação, aos estudantes, às universidades, às escolas, ao livre pensamento e exercício profissional do magistério, que vêm de todos os lados deste governo, só constroem desconfiança e minam qualquer relação positiva que se pode potencialmente ter na relação estabelecida dentro de um ambiente escolar”, critica.

O clima de animosidade que se instalou contra o exercício livre do magistério e da docência em oposição às políticas defendidas por movimentos como o da Escola sem Partido, não favorece a educação e tampouco o processo de ensino-aprendizagem, diz a nota. “Cria e constrói uma relação de suspeição permanente entre estudantes e pais com os seus professores/as. Estratégias como essas interditam o diálogo saudável que deve existir no ambiente escolar”.

CENSURA – A Constituição Federal (Art. 207) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Art. 14) estabeleceram os princípios da educação nacional. Entre eles está a “gestão democrática do ensino público”. Isso significa que a gestão das escolas públicas, bem como as relações cotidianas entre os diversos membros da comunidade escolar, deve se pautar pelos princípios da democracia, alerta a Frente Nacional Escola sem Mordaça.

“A gestão democrática da escola é condição fundamental à formação de estudantes capazes de exercer a cidadania por meio de participação ativa no processo educativo. Portanto, a relação entre os membros da comunidade escolar não é de antagonismos, mas de construção de convergências, a partir do respeito às diferenças, em prol de uma educação de qualidade, inclusiva, democrática e que contribua para o enfrentamento de todas as formas de preconceito, discriminação e violência”, alerta o Movimento, que elaborou diretrizes e orientações aos pais, alunos e corpo técnico para o enfrentamento das situações de agressão e censura. “É fundamental que as escolas invistam no fortalecimento dos Conselhos Escolares. Assim, famílias, estudantes e profissionais da educação poderão debater o cotidiano escolar e tomar decisões coletivas a seu respeito”, aponta.

A professora municipal Sabrina Luz foi denunciada em maio passado na ouvidoria da prefeitura de Macaé (RJ) por exibir em sala de aula o filme Besouro em uma abordagem sobre cultura afro-brasileira

Foto: Reprodução/YouTube

A professora municipal Sabrina Luz foi denunciada em maio passado na ouvidoria da prefeitura de Macaé (RJ) por exibir em sala de aula o filme Besouro em uma abordagem sobre cultura afro-brasileira

Foto: Reprodução/YouTube

“Nossa luta é constante na defesa da escola laica e da escola como espaço da ciência. No início do ano já explico o que é escola laica e separo o espaço da religião, da casa e da família com o da ciência na escola. Todo ano sinto que está mais difícil”, explica a professora Sabrina Luz, do Colégio Municipal Professora Elza Ibrahim, no bairro Ajuda de Baixo, em Macaé (RJ). Sabrina foi denunciada em maio passado na Ouvidoria da prefeitura por exibir em sala de aula o filme Besouro em uma abordagem sobre cultura afro-brasileira com alunos do 6º ano. A obra conta a vida de Besouro Mangangá, interpretado por Ailton Carmo, um capoeirista brasileiro da década de 1920, e retrata um levante no recôncavo baiano liderado pelo capoeirista. “O filme é alvo da intolerância religiosa, pois mostra os orixás ao abordar as religiões afro-brasileiras”. A professora revelou a denúncia em um vídeo pelas redes sociais, com mais de 50 mil visualizações, o que motivou a mobilização de educadores para defender o cumprimento da Lei 10639/2003, que regulamenta o ensino da história e da cultura afro e indígena.

Para a presidente da Associação Mães e Pais pela Democracia, Aline Kerber, as declarações da ministra demonstram que o governo não compreende que está impondo uma moral e uma ética que vão de encontro à pluralidade de ideias e de diversidade de concepções pedagógicas

Foto: Igor Sperotto

Aline Kerber, presidente da Associação Mães e Pais pela Democracia. Socióloga, especialista em segurança cidadã, Aline alerta que essa desconfiança entre alunos e professores fomentada pelo governo só pode resultar em dificuldades de ensino-aprendizagem

Foto: Igor Sperotto

Para a presidente da Associação Mães e Pais pela Democracia, Aline Kerber, as declarações da ministra demonstram que o governo não compreende que está impondo uma moral e uma ética que vão de encontro à pluralidade de ideias e de diversidade de concepções pedagógicas. “Se o professor precisa falar de um tema somente a partir do que está escrito em uma cartilha significa que ele está restrito, limitado e não tem liberdade de ensinar, um atentado contra o artigo 206 da Constituição Federal”, aponta. Socióloga, especialista em segurança cidadã, Aline alerta que essa desconfiança entre alunos e professores fomentada pelo governo só pode resultar em dificuldades de ensino-aprendizagem, adoecimentos de professores, impossibilitando gestões democráticas nas escolas. “Professor nenhum se sustenta em sala de aula com autoritarismo, por isso que também fica difícil entender o papel que querem dar aos militares nas escolas gaúchas hoje. Querem criar uma hierarquia de forças na escola e esvaziar o trabalho da educação e do professor, impondo o emparedamento do gesto e da palavra”, denuncia. Aline lembra que está tramitando na CCJ da Câmara de Porto Alegre um projeto de lei que visa a restringir o ensino de gênero e sexualidade nas escolas municipais e o PL 20/19 do Executivo que interfere nas gestões das escolas municipais da capital. “Eles tentam de todas as formas implementar algum projeto de restrição de liberdades, mas a cada nova censura surge uma nova potência e força de resistência”.

A professora e militante do Movimento Escola sem Mordaça no RS, Russel Dutra da Rosa, considera que a iniciativa anunciada pela ministra “é uma expressão de um estado de exceção que o atual governo vem implantando no país, especialmente em relação à educação. Ela alerta que a proposta de “delatar” professores é uma das ideias do movimento Escola sem Partido, cujos projetos de lei, cerca de 25 nos municípios, foram rejeitados por sua inconstitucionalidade. “Mesmo onde os projetos foram aprovados, as leis foram suspensas pelo Judiciário como inconstitucionais. Ainda assim, a ministra, que deveria estar coordenando ações contra a violação dos direitos humanos e violência contra as mulheres, ameaça os professores com a criação desse canal de denúncias, uma medida típica de estado de exceção, que ignora a Constituição”.

A professora Russel Dutra da Rosa, do Movimento escola sem Mordaça, considera a iniciativa uma expressão de um estado de exceção

Foto: Igor Sperotto

A professora Russel Dutra da Rosa, do Movimento escola sem Mordaça, considera a iniciativa uma expressão de um estado de exceção

Foto: Igor Sperotto

CÂMERAS – Desde 2013, o Sinpro/RS atua contra a utilização de câmeras de vigilância de professores e estudantes em sala de aula. “Uma atuação que vai desde a tentativa de convencer com argumentos pedagógicos as direções de escolas do quanto as câmeras simbolizam a ineficiência da tarefa de educar sujeitos cidadãos, até o ajuizamento de ações para que estes recursos não sejam usados”, explica a professora Cecília Farias, diretora do Sinpro/RS. Segundo ela, essa situação acontecia pontualmente em algumas escolas privadas que não reconheceram os dispositivos constitucionais de liberdade de ensinar e aprender, tampouco os Pareceres dos Conselhos de Educação Estadual do RS e Municipal de Porto Alegre. “O que antes era iniciativa tímida da escola privada, hoje se transforma numa política de governo, anunciada pela ministra Damares, para todas as escolas do país”, lamenta.

 

 

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