MOVIMENTO

Reforma agrária parada ameaça produção de alimentos

MST lança plano emergencial com políticas e programas de crédito a produtores e cooperativas de agricultores em todo o país
Por Gilson Camargo / Publicado em 4 de junho de 2020
Assentamentos da reforma agrária doaram 40 mil toneladas de alimentos a populações vulneráveis desde o início da pandemia

Foto: MST/ Divulgação

Assentamentos da reforma agrária doaram 40 mil toneladas de alimentos a populações vulneráveis desde o início da pandemia

Foto: MST/ Divulgação

As políticas da reforma agrária vêm sendo esvaziadas nos últimos cinco anos e desde a posse de Jair Bolsonaro (sem partido), o Programa Nacional da Reforma Agrária foi abandonado de vez. Enquanto isso, se multiplicam os latifúndios improdutivos ou que não cumprem função social e as terras nas mãos de empresários e parlamentares envolvidos em corrupção.

São 180 mil famílias de agricultores excluídas do acesso à terra no Brasil. Parte desses produtores foi parar em acampamentos à beira de estradas após sofrerem ações de despejo ou estão produzindo alimentos em terras passíveis de desapropriação, a exemplo de 10 mil famílias do Paraná.

O resultado do abandono das políticas de reforma agrária já pode ser sentido na mesa por boa parte dos brasileiros: a produção de alimentos sustentáveis e a mão de obra no campo recuaram e o caminho ficou livre para as leis de mercado e os preços altos dos grandes produtores.

Queda na produção de alimentos

A agricultura familiar, que de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Ibge) produzia mais da metade dos alimentos consumidos no país em 2016, minguou desde o governo de Michel Temer (2016-2018).

Dados do Censo Agropecuário de 2017 apontam uma redução de 9,5% no número de estabelecimentos classificados como de agricultura familiar em relação ao Censo de 2006. A agricultura não familiar criou 702 mil postos de trabalho, enquanto a pequena propriedade perdeu 2,2 milhões de trabalhadores.

A demarcação e a desapropriação de terras improdutivas também saiu de vez da agenda do Instituto Nacional da Reforma Agrária (Incra), que nesse período não cadastrou ou assentou uma só família.

De acordo com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o país tem mais de 220 mil hectares de terras improdutivas – segundo critérios do próprio Incra.

“Praticamente aniquilaram a reforma agrária em todo o país. O Incra foi desmantelado. Restam alguns técnicos, o superintendente, que não têm mais nenhuma política pra fazer, a não ser titular terras”, desabafa Salete Carollo, da direção nacional do MST.

E continua: “A reforma agrária no país foi destruída. E não é só a reforma agrária, é toda a política para a agricultura camponesa, para a agricultura familiar. Agora, com a crise da seca e a pandemia, a sesta básica e as ações mais primárias não chegam aos acampamentos”.

A opção de governo pelo agronegócio

Plano emergencial prevê acesso à terra, crédito e incentivo à produção de alimentos sustentáveis

Foto: MST/ Divulgação

Plano emergencial prevê acesso à terra, crédito e incentivo à produção de alimentos sustentáveis

Foto: MST/ Divulgação

Sem assistência técnica e com uma infraestrutura precária que dificulta o acesso a estradas e à água potável, a produção de alimentos nos assentamentos já estava ameaçada desde muito antes da pandemia.

Além disso, o crédito aos pequenos produtores do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) foi extinto em janeiro deste ano.

E os programas de aquisição de alimentos pelo governo – o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) – foram abandonados.

Antes da extinção, por Bolsonaro, o Pronaf registrou queda no número de contratos de concessão de crédito a pequenos agricultores. De acordo com o Banco Central, de 2013 a 2015, a redução foi de 290.864 contratos, de 1,99 mil para 1,7 mil.

Crédito na mão do latifúndio

Numa comparação entre os anos de 2013 e 2019, a redução chega 32% no número de operações contratadas. Para o coordenador da Confederação Nacional da Agricultura, Marcos Rochinski, isso aponta a tendência de migração do crédito para as mãos do agronegócio em detrimento da pequena propriedade rural.

Divulgado em outubro do ano passado, o último Censo Agropecuário do Ibge não deixa dúvidas sobre a opção das políticas de governos não populares pelo fomento ao agronegócio. A área total dos latifúndios – estabelecimentos rurais com mais de mil hectares – apresentou um aumento de 45% para 47,6% nas últimas edições do Censo.

Essas fazendas se multiplicaram, de 47,5 mil propriedades em 2006 para 51,2 mil em 2017. E também aumentaram a área ocupada, de 150 mil para 167 mil hectares. “Mais do que dizer que a concentração fundiária está aumentando, é importante dizer que estão crescendo os ‘superlatifúndios’ principalmente nas áreas de fronteira agrícola”, resumiu à época o engenheiro florestal Acácio Zuniga Leite, cientista do Núcleo de Estudos Agrários da Universidade de Brasília (UnB).

Concentração da terra

O documento Terra, Poder e Desigualdade na América Latina compara a concentração das propriedades rurais em 15 países da região, com destaque para o Brasil, a partir da análise dos Censos Agropecuários. No Brasil, o agronegócio se estende por 45% da área rural do território.

Área da pequena produção caiu 9,5% e perdeu 2,2 milhões de trabalhadores em uma década

Foto: MST/ Divulgação

Área da pequena produção caiu 9,5% e perdeu 2,2 milhões de trabalhadores em uma década

Foto: MST/ Divulgação

Em 2017, o então presidente Temer havia promulgado o Decreto 9.064, que modificou a aplicação da lei da agricultura familiar.

O pesquisador na UnB repara que a mudança na legislação excluiu o produtor rural mais pobre do levantamento, o que explica a redução das estatísticas relativas à agricultura familiar.

De acordo com os dados do Ibge, a agricultura familiar responde por 48% do valor da produção de café e banana no país, 80% do valor de produção da mandioca, 69% do abacaxi e 42% da produção do feijão. No Rio Grande do Sul, os assentamentos do MST são os maiores produtores de arroz do continente Sul-americano.

Um plano emergencial para a reforma agrária

Para superar tantas adversidades, o MST decidiu lançar um plano emergencial de reforma agrária com políticas e crédito para os pequenos produtores. O lançamento será nos 24 estados onde existem assentamentos da reforma agrária – foi desses acampamentos que saíram 40 mil toneladas de alimentos doados a grupos vulneráveis atingidos pela crise sanitária.

A Covid-19, alerta o movimento, evidenciou o tamanho da crise econômica enfrentada pelo país e a falta de políticas públicas para o campo mandou a conta para os mais vulneráveis.

“Nesse período de pandemia, ficou comprovada a importância de se ter camponeses produzindo alimentos. Estamos provando que a reforma agrária é a política mais estruturante para acabar com a fome e a miséria no país. Inclusive com a desigualdade social”, destaca Salete Carollo. “Ao invés de ser uma concentração de terras que gera uma desigualdade, você desconcentra a terra, coloca nas mãos dos trabalhadores para eles produzirem alimentos e acabar com a fome e a miséria no país”.

Reforma agrária emergencial inclui garantias de condições de vida digna para a população do campo

Foto: MST/ Divulgação

Reforma agrária emergencial inclui garantias de condições de vida digna para a população do campo

Foto: MST/ Divulgação

No Rio Grande do Sul, onde os assentamentos da reforma agrária somam 294 mil hectares em 98 municípios, a proposta emergencial será debatida em transmissão pela internet nesta sexta-feira, 5.

O plano deverá chegar aos parlamentares ligados à agricultura familiar no Senado e na Câmara dos Deputados, para ser transformado em projeto de lei.

“Existem vários projetos de reforma agrária parados à disposição do presidente da República. Eles têm a capacidade de abrigar quase quatro mil famílias. Por que nada foi feito?”, indaga Salete.

Nas margens das estradas

De acordo com o cadastro do Incra, o país tem 150 mil famílias de assentados e o Rio Grande do Sul, 2,5 mil. Como o órgão não cadastrou nem uma família nos últimos anos, esses números estão defasados. Segundo o MST, já são mais de 30 mil famílias vinculadas aos acampamentos que não estão cadastradas pelo órgão em nível nacional. No Rio Grande do Sul, esse acréscimo ultrapassa as 1,2 mil famílias.

“O número de famílias acampadas aumentou, porém o cadastro não foi feito. Tem uma diferença entre o cadastro e o número real de famílias acampadas. Nesse período da pandemia, com a falta de alimentação nos acampamentos, muitas famílias foram acolhidas por familiares”, relata Salete.

A liderança nacional do MST destaca que não houve só o desmonte da reforma agrária, mas das políticas de desenvolvimento da agricultura do pequeno, seja assentado, seja pequeno agricultor.

“E agora, com esse período da pandemia, isso se agrava mais ainda. Por outro lado, para o agronegócio não faltou isenção, não faltou recursos nem condições para a comercialização da safra para o mercado. Então você percebe que aquelas políticas que a gente vinha construindo ao longo dos últimos dez, 15 anos, foram destruídas pouco a pouco. Olha o Pnae, uma grande política que nós conquistamos e que acabou sendo descaracterizado”.

Crédito para as agroindústrias

No documento são listadas ações de proteção e produção que têm como objetivo garantir condições de vida digna para a população do campo, com destaque para a crise ambiental “que se relaciona à pandemia gerada pela exploração insustentável dos bens naturais”.

O plano reivindica a garantia de terra e trabalho para a igualdade no campo, desapropriação de latifúndios improdutivos em áreas próximas às cidades para produção e assentamento de famílias das periferias da cidade.

“O problema não é falta de terras. Terras nós temos e a necessidade de fazer a reforma agrária nelas e, inclusive, terras de corruptos que temos muito. A lei hoje é muito clara, desde o Estatuto da Terra, quais são as terras de reforma agrária. O primeiro foco é em uma reforma agrária ampla e popular no Brasil, para assentar, nesse primeiro momento, essas 150 mil famílias acampadas”, ressalta Salete.

Iniciativa reivindica financiamento para agroindústrias e cooperativas de pequenos agricultores

Foto: MST/ Divulgação

Iniciativa reivindica financiamento para agroindústrias e cooperativas de pequenos agricultores

Foto: MST/ Divulgação

A produção de alimentos saudáveis, destaca o documento do MST, só será completa com a ampliação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e com financiamento e difusão de máquinas agrícolas para a agricultura familiar e camponesa.

Para isso, elenca a liberação de linhas de crédito especial dos bancos públicos para financiamento de agroindústrias cooperativas para produção de alimentos e liberação de fomento emergencial para estimular a produção nos assentamentos.

Da produção à comercialização

“Com o fim do Pronaf, que era o último crédito que a gente tinha, estamos apresentando um formato de crédito. Não é subsídio, que seria o ideal e muito importante para um país sustentável, com desenvolvimento. Os maiores países do mundo que tiveram sua agricultura com pleno desenvolvimento tiveram subsídios do Estado. Nem isso a gente tá pedindo”.

Além de um crédito de R$ 5 mil para todas as famílias, apresenta a opção de R$ 50 mil para que cada família possa estruturar sua unidade de produção e um terceiro crédito para as cooperativas.

O terceiro eixo é em relação à dimensão da comercialização. Ainda no eixo da produção tem um enfoque na produção agroecológica, produção de alimentos sustentáveis. Na parte da comercialização, busca fortalecer todas aquelas políticas públicas que já haviam sido conquistadas, desde o PNAE, PAA, e a rede de comercialização.

“Tínhamos vários programas no governo, muito bons, muito estruturantes e a gente reforça isso. O nosso canal da comercialização. E tem as feiras. Dentro disso, um outro eixo é a questão das agroindústrias nas áreas de reforma agrária e para a agricultura familiar. São programas que já tínhamos e que queremos recuperar com maior força. Para isso, tem que ser um crédito, diferenciado”.

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