OPINIÃO

Soltando o cabelo e a voz das meninas negras na escola

Por Carmen de Oliveira / Publicado em 23 de agosto de 2019
Meninas Crespas da Restinga, em Porto Alegre

Foto: Igor Sperotto

Meninas Crespas da Restinga, Porto Alegre, RS

Foto: Igor Sperotto

Nos últimos anos tem crescido o número de projetos escolares em várias regiões do país com foco no empoderamento de meninas negras. Esta é uma boa notícia pois embora a escola seja um dos espaços com práticas racistas recorrentes, nem sempre se observa uma percepção crítica sobre as relações étnico-raciais e suas implicações no processo de aprendizagem e, desta forma, a escola acaba reproduzindo as fantasias de igualdade social e de democracia racial no país.

Observa-se que são projetos que surgiram, predominantemente, nessa década e trazem marcas do feminismo negro. Neste contexto, chama a atenção a prevalência da autoaceitação como tema gerador, a partir da constatação de que as meninas negras sofrem humilhações e rejeição em sala de aula, que incidem na autoestima, sociabilidade e desempenho escolar. Este ponto de partida da valorização de si vem ao encontro à proposição da escritora nigeriana Chimamanda Nogzi Adiche no livro Para educar crianças feministas, ao referir que a premissa básica do feminismo é: “eu tenho igualmente valor”.

A inflexão que a autora dá ao “igualmente” é fundamental pois muitas pessoas afirmam o seu valor por oposição a outro sujeito ou outro grupo social, como na expressão “cidadão do bem”. Assim, dizer que homens e mulheres, brancos e negros têm igualmente valor nos permite sair de uma lógica excludente ou hierarquizante. Mais do que isto, sinaliza a necessidade de deslocamento do “duplo narcisismo” que prende o branco na sua brancura e o negro na sua negritude, conforme descrito pelo psiquiatra e filósofo argelino Frantz Fanon.

A professora Perla da Silva Santos, 35 anos, integra o projeto Meninas Crespas da Restinga. O trabalho é comunitário e se apresenta como uma alternativa viável para tratar do tema dentro da escola, seja como espaço de fala, seja como experiência pedagógica e expressão cultural

Foto: Igor Sperotto

A professora Perla da Silva Santos, 35 anos, integra o projeto Meninas Crespas da Restinga. O trabalho é comunitário e se apresenta como uma alternativa viável para tratar do tema dentro da escola, seja como espaço de fala, seja como experiência pedagógica e expressão cultural

Foto: Igor Sperotto

A maioria das iniciativas de empoderamento das meninas negras na escola busca a superação do “complexo de inferioridade” que foi injetado socialmente, tendo os cabelos crespos como disparador das discussões. Este tema se faz presente inclusive na forma de nomear os projetos: Naturalmente cacheadas, Poder do Crespo e o Empoderamento, Movimento Meninas Crespas, Solta esse Black, Crespinianas.

Esta não é uma pauta meramente estética pois agencia diretamente na subjetivação infantil. Desde cedo, todas as crianças percebem que o tipo de beleza valorizada socialmente é aquela associada ao branco pois isto estará demarcado na publicidade, na televisão, nos filmes, nas vitrines. Além da invisibilidade, são difundidos signos pejorativos da negritude, produzindo o que Fanon chamou de “epidermização da inferioridade”, que se fixa na pele negra como um “signo de um renegado”.

A produção desta supremacia branca no universo infantil é evidenciada, por exemplo, no levantamento realizado em 2018 como parte da campanha Cadê nossa boneca, realizado pela ONG Avante, que apontou que apenas 7% das bonecas fabricadas no Brasil são negras, muito embora haja um mercado consumidor potencial pois 55% dos brasileiros se reconhecem como pretos ou pardos.

Mais preocupante do que a falta de representatividade negra são os efeitos da desqualificação dos negros e que se fazem presentes já na infância, como demonstrado no clássico experimento realizado na década de 40 nos Estados Unidos e recentemente atualizado na Itália com semelhantes resultados. O vídeo do Teste da boneca mostra como as crianças negras têm uma percepção negativa de uma boneca de sua cor, reproduzindo a discriminação racial a que são submetidas.

Neste contexto, não é de estranhar que a menina negra se sinta seduzida a usar “máscaras brancas” como forma de reconhecimento social. As oficina de turbante e penteado afro nestes projetos, por exemplo, se tornam estratégias não somente para a ressignificação da sua corporalidade, mas da reapropriação da história e da cultura africana uma vez que estas atividades geralmente são complementadas com a discussão sobre a presença das mulheres negras nas artes, na literatura, na ciência e política.

Observa-se ainda uma riqueza de experimentações nestes projetos, tais como pesquisas historiográficas, rodas de conversa com ativistas sociais, leituras de autores negros, contação de histórias, fotografia e produção de vídeos. Parte deste repertório é compartilhado com as famílias, comunidades e público em geral, através de performances teatrais, mostras fotográficas, desfile de moda, aulas de ioruba, danças ancestrais e de ritmos afro-brasileiros, bem como nas mídias sociais (blogs, Facebook, Youtube e Instagram). Algumas iniciativas incluem ações de mobilização social, como brechó solidário, cartas a mulheres com direitos violados e campanhas educativas nos bairros, ou então geram empreendimentos sustentáveis na confecção de camisetas, mochilas ou bonecas negras.

O que podemos aprender com esta trajetória? Em primeiro lugar, que é preciso reconhecer e enfrentar os efeitos adversos do racismo no ambiente escolar e, especialmente, superar a ideia de um processo educativo desracializado, o que acaba reificando a identidade racial normativa. Um segundo aprendizado se refere ao formato da intervenção que, pelos focos temáticos e diversidade de recursos, tem se mostrado mais atrativo, efetivo e com maior alcance do ponto de vista das mutações subjetivas do que a simples discussão de conteúdos em sala de aula. Sobretudo, as experiências sinalizam que a redução dos danos do racismo na vida das meninas negras precisa ter uma dupla função: desintoxicadora e instituinte, tanto para acolher o lamento diante da experiência cotidiana de discriminação e violências, mas também para a reconquista de si e de sua história neste “tornar-se negra”.

 

* Carmen Silveira de Oliveira é psicóloga e escreve mensalmente para o site do jornal Extra Classe sobre gênero e direitos humanos

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