SAÚDE

Sem vacina, estado viverá uma tragédia anunciada

O cientista Pedro Hallal explica como o Rio Grande do Sul passou de estado com melhores práticas de controle da pandemia para a situação de caos hospitalar e alta proliferação de covid-19 em poucos meses
Por César Fraga / Publicado em 23 de fevereiro de 2021
Hallal: "um fator que contribui para a situação caótica que estamos vivendo é o baixo ritmo da vacinação"

Foto: Reprodução/UFPel/Divulgação

Hallal: “um fator que contribui para a situação caótica que estamos vivendo é o baixo ritmo da vacinação”

Foto: Reprodução/UFPel/Divulgação

“Quanto menos gente morrer, melhor para a economia. Isso, em qualquer lugar do mundo e em qualquer momento da história. Basta ver quais são os países hoje que estão com suas economias mais preservadas. São os países onde tem menos mortes”, explica o epidemiologista Pedro Rodrigues Curi Hallal.

Na entrevista a seguir, o cientista faz um histórico da pandemia e explica como o Rio Grande do Sul passou de estado com maior índice de distanciamento e de práticas de controle da pandemia até meados de agosto passado para região com alta proliferação do novo coronavírus, com UTIs lotadas, capacidade hospitalar acima de 100% e dos postos de saúde já passando do dobro. A tendência é de agravamento.  “Sem vacina viveremos uma tragédia em um ou dois meses”, alerta. Para ele, o baixo ritmo da vacinação não acompanha o ritmo acelerado da proliferação do vírus.

Segundo gestores de saúde pública, trata-se do maior estresse do sistema de saúde brasileiro desde a criação do Sistema Único de Saúde (SUS).

Ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pedro Hallal segue coordenando a pesquisa Epicovid-19, que é considerada pela comunidade científica brasileira o maior mapeamento do avanço da covid-19 em todo o Brasil.

Hallal é docente associado da UFPel no curso de graduação em Educação Física e nos programas de pós-graduação em Educação Física e Epidemiologia e ganhou grande reconhecimento nacional pela pesquisa durante a pandemia e pelo debate sempre pronto sobre as medidas de contenção da pandemia.

Recentemente, ainda no final de janeiro, enfrentou uma campanha difamatória, comandada por setores bolsonaristas, justamente quando a Presidência da República e o MEC negaram-se a conduzir à reitoria o candidato mais votado nas eleições daquela Universidade, e que era ligado ao seu gabinete, indicando outro nome da lista tríplice, o que se efetivou.

Hallal possui graduação em Educação Física, mestrado e doutorado em Epidemiologia pela UFPel. Realizou estágio pós-doutoral no Instituto de Saúde da Criança da Universidade de Londres. Atuou como Reitor da UFPel entre 2017 e 2020. É um dos coordenadores da Coorte de 2015 de Pelotas e do Observatório Global de Atividade Física. É um dos sócios fundadores e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Atividade Física e Saúde. Foi membro afiliado da Academia Brasileira de Ciências entre 2008 e 2013. É bolsista de produtividade 1A do CNPq. É editor-chefe do Journal of Physical Activity and Health.

Extra Classe – Como o senhor avalia o desempenho do Rio Grande do Sul no histórico da pandemia e por que temos números elevados neste momento, com altos índices de contágio, lotação de hospitais, postos de saúde e lotação das UTIs, principalmente na capital do estado?
Pedro Hallal –
Em primeiro lugar precisamos entender que o Rio Grande do Sul, de março a agosto do ano passado, nos primeiros meses da pandemia no Brasil, teve um bom desempenho. Claro, que quando falamos de bom desempenho estamos falando em comparação ao restante do país. Porque tivemos muitas mortes evitáveis e muitas pessoas perderam familiares nesse período. Porém, na média, tivemos um resultado bastante razoável até aquele momento e que pode ser considerado minimamente bom.

EC – E por que o RS foi bem até aquele momento e não mais?
Hallal –
No começo da pandemia o Rio Grande do Sul era um dos estados que mais praticava distanciamento social. Esse é o primeiro ponto. Outra questão é que o RS pulou na frente nessa classificação por bandeiras. Quando se criou o modelo do distanciamento controlado, o Rio Grande do Sul foi o primeiro estado a adotar – ou um dos primeiros. E, lá no começo, este modelo era bastante respeitado. Pela combinação desses dois fatores, nós tivemos bons resultados até aquele momento (agosto). Mas, a partir de setembro e outubro a situação desandou.

EC – Por quê?
Hallal –
Em primeiro lugar, teve a eleição. Não tem como não falarmos nisso. Foi uma tragédia para a questão da propagação do novo coronavírus. Pessoal fazendo campanha para prefeito e vereador sem cumprir protocolos.

EC – E como entra a pressão empresarial para flexibilizar medidas de distanciamento?
Hallal –
Exatamente. Então, teve a questão da eleição, ocorreu também essa maior pressão empresarial e teve também a questão daqueles feriados prolongados nos meses de outubro e novembro. Tudo isso combinado e somado ao cansaço da população. Que também é natural e acontece. Porém, com isso, houve um aumento grande no número de casos nos meses de novembro e dezembro, quando o RS estava muito mal. E aí, quando entrou dezembro veio a coisa das festas de final de ano, o comércio bombando. Mas eu nem colocaria no comércio a responsabilidade. Eu entendo que janeiro foi muito ruim em decorrência das festas de final de ano e das aglomerações.

O que mudou

EC – Mas chegou a ter um indicativo de baixa, que depois reverteu, não foi?
Hallal –
Logo depois das festas de final de ano houve uma tendência de declínio. Se olharmos os números do meio de janeiro até uma semana atrás, havia uma impressão de que iria estabilizar e até cair os índices. É nesse momento que entra, mais do que qualquer outro fator, esta infelicidade que é a nova cepa do vírus. Eu acho que este aumento recente no estado já é reflexo de termos a nova variante circulando aqui.

EC – Feriados de Carnaval e veraneio entram nessa conta?
Hallal – O feriado de Carnaval ainda nem deu tempo de entrar na equação. Mas o veraneio sim. São vários fatores. Um pouco do veraneio, a nova variante – que tem um papel bem importante –, mas que não se pode afirmar com total certeza porque não está se testando todos os contaminados para saber se estão com a nova variante ou não. E um último fator que contribui para a situação caótica que estamos vivendo é o baixo ritmo da vacinação. Só que isso não é uma questão específica do Rio Grande do Sul. O estado e os municípios até que estão sendo eficientes para distribuir as poucas doses que estão recebendo.

Falta de comando

EC – O problema é federal? De comando, em Brasília?
Hallal –
O problema é a falta de vacinas. A tendência agora é, se a vacinação aumentar, menor será o impacto da nova variante da covid-19.

EC – E não tendo vacina? Porque na prática, por ineficiência do governo Bolsonaro é a  situação em que vivemos…
Hallal –
Na hipótese de não haver vacina, com o vírus circulando, a tendência é daqui um ou dois meses estarmos vivendo uma tragédia. Porque com a variante nova circulando, muita gente infectada, com a dificuldade que estamos tendo para implementar as medidas de distanciamento, a tendência é agravar. Por mais que o governo estadual esteja tentando, precisamos reconhecer isso e fazer esse elogio. Finalmente, parece que o governo do estado voltou a levar a sério o distanciamento. Repito, esse mesmo governo levou muito a sério o distanciamento de março a setembro e depois, de outubro de 2020 a janeiro deste ano, o próprio governo relaxou em relação à exigência do distanciamento. Agora parece que o governo deu uma acordada.

Pressão empresarial

EC – Mas mal o governo agiu no sentido de enrijecer protocolos e o empresariado já voltou a pressionar no sentido contrário…
Hallal –
Sempre vai haver pressão empresarial. Só que essa pressão é baseada numa premissa errada. O que considero o mais grave de tudo. A premissa empresarial equivocada é a de que, quanto mais aberto estiver melhor para a economia. Todas as pandemias do mundo, ao longo da história, até hoje, nos mostram que esta premissa está errada. Quanto menos gente morrer, melhor para a economia. Isso, em qualquer lugar do mundo e em qualquer momento da história.  Basta ver quais são os países hoje que estão com suas economias mais preservadas. São os países onde tem menos mortes.

Retomada na educação

EC – E a questão do retorno das atividades nas escolas e das aulas presenciais em escolas e universidades? O que tem de mito e de verdade tanto da parte de quem defende o retorno, quanto de quem está contra?
Hallal –
Acho que tanto quem defende o retorno, quanto os que estão contra, têm apresentado posições equivocadas. Os que acham que tem de voltar a qualquer custo e que nem deveria ter parado, assim como os que entendem que tem de voltar só quando todo mundo estiver vacinado. Os dois estão errados. A prática é o seguinte. As aulas das crianças (séries iniciais e educação infantil) precisam voltar. As crianças não podem ficar dois anos sem escola. Então, ao longo do primeiro semestre as aulas precisam voltar. A questão central é como elaborar protocolos que sejam seguros. A maior parte da disseminação e desse descontrole que a gente está vivenciando agora não é causada por escolas. Tanto é verdade que as escolas não estavam nem abertas. O descontrole é causado por aglomeração, por festas, gente sem máscara e sem cuidados mínimos de higiene.

EC – E os restaurantes?
Hallal –
Sabe que pelo que se observa, nem os restaurantes são vilões. Nem mesmo as indústrias. Se pegarmos as indústrias, o protocolo deles é bom. Tem pouca gente se contaminando. O mesmo vale para o comércio em geral. Com exceções, mas no geral está bem.

 Verdadeiros vilões

EC – Quem é o vilão?
Hallal –
O problema hoje é o que sempre foi, a aglomeração. Festa de gurizada. Barzinho. Noite. É aí que está descontrolando. Tem de começar enfrentando esses lugares aí, que são os mais cruciais. Por isso, a medida do governo estadual que prevê uma espécie de toque de recolher considero correta, especialmente no verão.

EC – Qual o papel do litoral e do veraneio nisso?
Hallal –
O importante é evitar as praias. Mas se fosse escolher um local para ir com a família eu escolheria a praia com protocolos mais rígidos. E é aí que está faltando um papel de liderança, tanto federal, quanto estadual. Essas diferenças que existem de localidade para localidade nas práticas e nos protocolos – umas mais frouxas e outras não –, elas não poderiam acontecer. Quando o STF disse que os prefeitos e os governadores tinham poderes para determinar seus decretos, esses poderes não são ilimitados. Não era para poder ter nenhuma praia no Brasil descumprindo regras mínimas de distanciamento.  Aí falta comando federal. Falta centralização no Ministério da Saúde e da presidência. Falta coordenação.

Ponto fraco

EC – Os prefeitos são jogados à pressão direta e próxima de seus clientes políticos, feudos empresariais locais e sem um amparo federal para sustentar medidas mais rígidas?
Hallal –
Quando a responsabilidade é jogada para o nível da prefeitura, se está tratando com alguém que é mais próximo do seu público. E o que acontece na prática é que o prefeito será muito mais facilmente pressionado pelo empresariado local do que o presidente da República. Na maioria das cidades do Brasil vai ter inclusive um parente do governante fazendo pressão política por flexibilização. Pensando nessa lógica, quanto mais centralizadas as decisões políticas melhor. Não para tudo, mas para isso. Só que, infelizmente, as políticas locais estão muito dependentes de quem é o prefeito e de que pressões ele está suscetível. Precisaria ter uma política mais coordenada a nível nacional e não temos. Às vezes até a nível estadual. Em vários estados há profunda falta de liderança dos governos.

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