GERAL

Transporte público de Porto Alegre à beira do caos

Frota defasada, passagens caras, lobby dos transportadores e ameaça de privatização da Carris pressionam o transporte público da capital gaúcha, que já perdeu quase um terço dos usuários
Por Flávio Ilha / Publicado em 10 de junho de 2022

Envios diários

Envios diários

Foto: Leonardo Contursi/CMPA

A capital gaúcha, que já teve uma das melhores frotas da América Latina, perde passageiros pela falta de qualidade dos serviços e por ter uma das tarifas mais caras do país

Foto: Leonardo Contursi/CMPA

Pressionado pela segunda tarifa mais cara do país aliada à crescente precarização do serviço, o transporte público de Porto Alegre está diante de um dilema: ou encontra soluções para retomar a relevância de duas décadas atrás, quando já foi considerado o melhor sistema rodoviário de passageiros da América Latina, ou ruma para o caos. Dados da própria prefeitura revelam que, desde meados de 2015, o fluxo de passageiros caiu cerca de 30% na capital

E não se trata de preço, pois, desde fevereiro de 2021, a tarifa em Porto Alegre está congelada nos R$ 4,80 – valor que só perde para os R$ 5,50 praticados em Brasília entre todas as capitais brasileiras. O reajuste foi cancelado em abril por um decreto do prefeito Sebastião Melo (MDB), que também alterou a base de cálculo para a remuneração das empresas. As transportadoras de passageiros reivindicavam uma tarifa de R$ 6,65. A diferença está sendo bancada pela prefeitura.

Foto: Mateus Raugust/PMPA

Castro quer privatização da Carris até dezembro

Foto: Mateus Raugust/PMPA

O secretário de Mobilidade Urbana de Porto Alegre, Adão de Castro Júnior, diz que a manutenção da tarifa faz parte do programa Mais Transporte, que busca garantir a sustentabilidade e o equilíbrio econômico-financeiro do sistema. Ele citou as recentes medidas do governo, como a retirada paulatina de cobradores, a redução do passe livre e das gratuidades, além da privatização da Carris, como mecanismos de equilíbrio. A centenária empresa pública de transporte deve ser vendida até dezembro.

 

O aporte de recursos da prefeitura para cobrir o déficit do sistema de transporte coletivo foi de R$ 110 milhões em 2020, sendo R$ 40 milhões para as empresas e R$ 70 milhões para a Carris. Ao longo de 2021, conforme o município, foram aportados R$ 108 milhões, divididos em R$ 43 milhões para as concessionárias privadas e R$ 65 milhões para a estatal. Isso representa cerca de 12% do custo de operação do sistema.

Redução dos usuários do transporte público

Foto: Fabrizio Motta/ Embarq Brasil/ Divulgação

Remuneração por quilômetro pode favorecer expansão de forma insustentável, alerta Lindau

Foto: Fabrizio Motta/ Embarq Brasil/ Divulgação

Além de manter o valor da tarifa, a prefeitura também anunciou em abril aumento de 20% na oferta de viagens – serão mais 19 linhas, 109 ônibus, 2.163 viagens por dia e 52,6 mil quilômetros rodados a mais por dia. Dados apresentados pela prefeitura apontam que, em abril de 2020, no início da pandemia, eram transportados 227.504 passageiros por dia na capital. Em 2019, antes da pandemia, esse número era de 801.029 pessoas.

 

A prefeitura, além disso, implantou um novo modelo de cálculo tarifário utilizando custo por quilômetro rodado (anteriormente, era por volume de passageiros), com base na projeção do custo do sistema para o ano vigente. A mudança foi acertada em conjunto com as empresas, mas sem a participação do Conselho Municipal de Transportes Urbanos (Comu). O risco do novo modelo é gerar subsídios cada vez maiores por parte da prefeitura, no sentido de que a fiscalização sobre a quilometragem precisa ser muito rigorosa.

“Quando a remuneração é por passageiro, os dados das roletas cobrem praticamente 100% do sistema, as quebras são inexpressivas. Quilometragem, não. É preciso fiscalizar muito bem a quantidade e a qualidade das viagens, pois as empresas podem muito bem oferecer novos horários e trajetos em detrimento das necessidades dos usuários apenas para lucrar com o modelo”, pondera Luis Antonio Lindau, do instituto de pesquisas com vistas à sustentabilidade WRI Brasil.

O especialista explica que, com esse sistema, as empresas tendem a pressionar a municipalidade para expandir linhas, sem se preocupar com a sustentabilidade.

Caos já é realidade para usuários

Foto: Gabriel Ribeiro/CMPA Foto: : Mateus Raugust/PMPA

Ruas, com a vereadora Fran Rodrigues: “A ATP manda na cidade há muitos anos”

Foto: Gabriel Ribeiro/CMPA Foto: : Mateus Raugust/PMPA

O caos, para quem usa o sistema de transporte, já é uma realidade. A frota porto-alegrense, que já teve mais de 1,7 mil veículos, hoje mal chega aos mil ônibus.

Desses, 54% têm dez ou mais anos de uso, conforme a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC)

Ou seja, terão de ser trocados em curto prazo, uma vez que a lei limita o uso até 14 anos. Em torno de 10% deverão ser substituídos até o final de 2022.

Pelo contrato de concessão, parte da tarifa deve ser destinada à renovação da frota. Porém, a redução no volume de passageiros, agravada pela pandemia do novo coronavírus, fez com que as empresas deixassem de investir.

“Porto Alegre vive um retrocesso muito grande, especialmente na área do transporte de passageiros. A Associação dos Transportadores de Passageiros (ATP) manda na cidade há muitos anos”, diz o vereador Pedro Ruas (PSol).

Para ele, as alterações promovidas pela prefeitura caminham na direção de benefícios cada vez maiores às empresas, não aos usuários. “Mesmo que a tal nova oferta de linhas se concretize, ainda assim não chegaremos a 70% da oferta que havia em 2019”, projeta.

O gerente de planejamento da EPTC, Flávio Tumelero, informa que a idade média da frota em Porto Alegre é de nove anos. Uma década atrás, a idade era de cinco anos. “É óbvio que quanto mais velha for a frota, menos conforto e mais danos vai acarretar aos usuários. A frota está defasada, essa é a verdade”, reconhece.

Não fosse por uma lei de 2016, a qual estendeu a vida útil dos veículos na capital de dez para 14 anos, o sistema estaria à beira da falência.

Opção pelo modal rodoviário

Foto: Andielli Silveira/CMPA Foto: Carolina Lima / CUT-RS

As empresas deixaram de investir os 10% previstos em contrato para a aquisição
de novos ônibus: a frota envelheceu, reconhece Lovatto, da ATP

Foto: Andielli Silveira/CMPA Foto: Carolina Lima / CUT-RS

Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 89% dos brasileiros que usam transporte público dependem do modal rodoviário. Estima-se que mais de 170 milhões de pessoas utilizem ônibus urbanos diariamente no país.

O Brasil, de acordo com o Ipea, está na 55ª posição das nações com o bilhete mais caro do mundo. Considerando todas as cidades brasileiras, a população paga, em média, R$ 4,10 para se deslocar de ônibus pelas vias urbanas.

A situação ainda pode piorar: nos últimos 12 meses, o preço do diesel acumulou alta de 65% nos preços, conforme dados do IPCA-Amplo medido pelo IBGE.

O engenheiro Antônio Lovatto, diretor técnico da ATP, diz que o sistema só para em pé com a ajuda do governo federal. “Houve medidas de redução de custo com pessoal, e as empresas deixaram de pagar ou repactuaram dívidas com impostos durante a pandemia.

Sem isso, a dificuldade seria ainda maior”, explica. De acordo com o diretor, o custo mensal do sistema chega a R$ 65 milhões.

Lovatto admite, entretanto, que o serviço perdeu qualidade na medida em que as empresas deixaram de investir os 10% previstos em contrato para a aquisição de novos ônibus. “A frota envelheceu”, reconhece – o que, de fato, acaba impactando negativamente o sistema como um todo. Mas, segundo ele, a remuneração por quilômetro rodado tende a melhorar a operação.

“É o modelo mais praticado no mundo. Em outras capitais, como São Paulo, Curitiba e Recife, é adotado há mais tempo e o resultado é uma renovação regular da frota”, completa.

Em maio, a prefeitura sugeriu em audiência pública virtual que a Carris, que opera 24 linhas de ônibus em Porto Alegre, seja vendida por R$ 125,8 milhões – dos quais R$ 10 milhões no ato da compra e o restante em um prazo de 14 anos.

As parcelas mensais seriam de R$ 690 mil. O valor é menor que o faturamento anual da empresa, da ordem de R$ 168 milhões.

Foto: Carolina Lima / CUT-RS

Cenci, da CUT-RS, critica subsídios às empresas privadas e
privatização da Carris: “Projeto oportunista e criminoso”

Foto: Carolina Lima / CUT-RS

O presidente estadual da CUT, Amarildo Pedro Cenci, argumenta que o alegado prejuízo da companhia faz parte de uma campanha deliberada para justificar a venda. Para ele, o interesse do setor privado na empresa é grande, pois a Carris tem algumas das linhas mais rentáveis da capital.

“A prefeitura tem concedido subsídios, de forma injusta e inadequada, às empresas de transporte coletivo de Porto Alegre, incluindo a Carris, enquanto deveria implantar uma política pública para os usuários, e não para os transportadores.

A Carris faz parte desse desenho oportunista e criminoso de privatizar aquilo que deveria ser público e de qualidade, como o transporte urbano”, defende Cenci.

 

Comentários