SAÚDE

Remédios demais

Marketing da indústria farmacêutica no Brasil estimula varejo agressivo com três vezes mais farmácias do que o recomendado pela OMS contribuindo para o excesso de consumo de medicamentos
Por Gilson Camargo / Publicado em 9 de outubro de 2015
Marketing da indústria farmacêutica no Brasil estimula varejo agressivo com três vezes mais farmácias do que o recomendado pela OMS contribuindo para o excesso de consumo de medicamentos

Foto: Igor Sperotto

Marketing da indústria farmacêutica no Brasil estimula varejo agressivo com três vezes mais farmácias do que o recomendado pela OMS, contribuindo para o excesso de consumo de medicamentos

Foto: Igor Sperotto

Sufocada por uma crise de asma, Andriza Oliveira da Silva, 14 anos, escreveu em um papel a palavra berotec, nome comercial do medicamento bromidrato de fenoterol, um broncodilatador que ela precisava para fazer a nebulização e controlar a crise respiratória. O bilhete foi levado à farmácia pela irmã de 11 anos que voltou com uma caixa de medicamento genérico comprado às pressas no balcão. Mas ao invés de berotec, a atendente entregou para a menina um colírio para glaucoma, o maleato de timolol, que causa o efeito contrário, ou seja, obstrui os brônquios, provocando ainda mais falta de ar. A substância foi colocada no nebulizador e inalada pela adolescente, que morreu horas depois em decorrência de um edema pulmonar agudo.

A morte de Andriza, ocorrida na noite de 14 de abril de 2014, foi investigada pela Polícia Civil, que indiciou a funcionária da farmácia por homicídio culposo. O processo aguarda julgamento na 1ª Vara da Justiça de Guaíba, no Rio Grande do Sul, e é citado por profissionais de saúde como exemplar das consequências de erro farmacêutico que, somado à automedicação, outra consequência do excesso de oferta, provoca 27 mil intoxicações com 73 mortes por ano no país. “Se há uma farmácia em cada esquina é porque existe uma disputa de mercado e isso não favorece a população, pois a concorrência pode levar a uma queda na qualidade dos serviços farmacêuticos. O acesso à saúde não se dá somente pela possibilidade de compra, mas pelo atendimento adequado, considerando que a farmácia é, sim, um estabelecimento de saúde”, ressalta a farmacêutica Célia Chaves, presidente do Conselho Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul.

A morte de Andriza não é um caso isolado. Em todas as instâncias do Judiciário proliferam os processos por danos morais contra farmácias comerciais por enganos na dosagem, troca de medicamentos, interpretação equivocada de receitas médicas, entre outras falhas que terminam em sequelas, incapacitações, intoxicações graves e mortes.

Faturamento cresceu 15,42%

Os indicadores sobre comportamento dos brasileiros em relação a remédios e as consequências relatadas pelos organismos de saúde pública não deixam dúvidas: a oferta exacerbada de medicamentos cristalizou a cultura da automedicação no país, a ponto de sete entre cada dez brasileiros admitirem que ingerem remédios sem orientação médica, apenas por intuição ou indicação de parentes e conhecidos. Por trás dessa adesão ao consumo compulsivo de remédios, que ignora a primeira lição dos cursos de Farmácia, de que a diferença entre veneno e remédio é sempre a dosagem, há uma estratégia de guerra montada pela indústria farmacêutica para aumentar as vendas – e os lucros.

O faturamento anual do setor nunca é inferior a dois dígitos. De acordo com a auditoria de mercado Pharmaceutical Market Brazil/ IMS Health, de setembro de 2014 a agosto de 2015, foram vendidas 3,3 bilhões de caixas de medicamentos no país, equivalente a 230 milhões de unidades a mais do que registrado no período anterior. Na comparação com o acumulado de setembro a agosto 2013/2014 e mesmo período de 2014/2015, o faturamento do setor cresceu 15,42%, totalizando R$ 72,7 bilhões. Trata-se de um mercado que cresce acima de 10% ao ano desde 2013, com projeção de se manter dessa forma até 2017.

“Aqui não tem crise”, alardeia o empresário cearense Francisco Deusmar de Queirós, dono da rede Pague Menos, que tem 750 lojas nos 26 estados e Distrito Federal. Ele projeta a abertura de cem farmácias por ano até atingir mil PDVs. Em 2014, o faturamento da rede cresceu 18%, totalizando R$ 4,4 bilhões. No Rio Grande do Sul são 12 lojas. Criada em 1981, a rede caiu de primeira para terceira posição no varejo farmacêutico em 2011, após denúncia do MP, anulada pelo STJ, por suposto envolvimento na contratação de um grupo de extermínio formado por policiais e ex-policiais, em Fortaleza. Em 2012 houve nova denúncia por lavagem de dinheiro.

27 mil intoxicações e 73 mortes por ano

Em setembro de 2014, o Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado farmacêutico (ICTQ) entrevistou 1.480 pessoas em 12 capitais para traçar o mapa da automedicação. Constatou que 94% da população adulta residente nas capitais pesquisadas têm o hábito de realizar compras em farmácias e drogarias, mesmo que eventualmente 76,4% se automedicam.

Remédios: 30,6% dos incidentes e segunda causa de morte na primeira infância

Foto: Leonardo Savaris

Remédios: 30,6% dos incidentes e segunda causa de morte na primeira infância

Foto: Leonardo Savaris

O maior percentual de automedicação foi constatado em Salvador (96%) e o menor em Belo Horizonte (35%). Mais de um terço dos pesquisados declarou que costuma aumentar por conta própria a dose prescrita pelo médico. A pesquisa indicou que há uma tendência de redução no consumo irregular de medicamentos controlados desde que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) passou a exigir a retenção da segunda via da receita dessa categoria de remédios.

O último levantamento do Sistema Nacional de Informações Tóxico Farmacológicas, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostra que a ingestão errada de medicamentos causa intoxicação de 27 mil pessoas por ano no país, sendo 73 ocorrências fatais. De 2008 a 2012, foram registradas 138.376 intoxicações e, dessas, 365 mortes por medicamentos, seja por acidente, tentativa de suicídio, uso terapêutico ou erro de administração. Entre as crianças menores de cinco anos, medicamentos são a causa de 30,6% das ocorrências de incidentes e a segunda causa de óbito (17,5%).

Segundo a biomédica Mirtes Peinado, do Núcleo de Farmacovigilância do Centro de Vigilância Sanitária de São Paulo, quase metade das internações por intoxicação no Brasil são causadas por mau uso de medicamentos. Durante o painel o IX Encontro Internacional de Farmacovigilância das Américas, em 2012, a médica demonstrou que as farmácias brasileiras vendem medicamentos tarja vermelha sem receita e que 40% dos remédios consumidos no país são antibióticos. Pesquisadores do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) compraram em farmácias de dez capitais o antibiótico Amoxilina sem apresentar a prescrição médica e saíram com o medicamento em 100% das farmácias visitadas.

Faturamento da rede cresceu 18% no ano passado

Foto: Igor Sperotto

Faturamento da rede cresceu 18% no ano passado

Foto: Igor Sperotto

Cada nova farmácia incrementa R$ 200 mil ao faturamento dos laboratórios

A relação indicada pelos organismos internacionais é uma farmácia para cada grupo de 8 a 10 mil habitantes. Quarto mercado de consumo de medicamentos do mundo, o Brasil tem 80 milhões de adeptos da automedicação. A média nacional, com base na projeção populacional do IBGE para 2015, dividida pelo total de farmácias credenciadas pela Anvisa, é de uma farmácia para cada 3 mil habitantes, quatro vezes mais do que o recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

A concentração de farmácias é maior nos grandes centros. Como o país tem extensas áreas não habitadas e grotões que não interessam ao comércio, essa proporção seria superior. Em Goiás, por exemplo, a relação é de uma farmácia para 1.831 pessoas; enquanto que em São Paulo é de uma para 3 mil. De acordo com a Anvisa, o país tem 67.231 farmácias e drogarias comerciais (não entram no cálculo as farmácias populares) para uma população projetada pelo IBGE para 2015 de 204,4 milhões de habitantes. O Ponto de Venda (PDV), nome usado pelo marketing do setor para designar uma farmácia comercial, é estratégico para a indústria farmacêutica.

“A conquista de cada (PDV) e 0,01% de share (participação) representa um incremento de U$ 52 mil na receita, e a indústria farmacêutica necessita de constante adaptação ao ambiente, devido à crescente concorrência e às iniciativas proporcionadas em função da busca de aumento da rentabilidade”, revela Mauro Pacanowski, especialista em Gestão de Negócios pela FGV e ex-executivo dos laboratórios Roche, Merck e Knoll.

Em um material promocional de apoio às palestras e treinamento para gestores e compradores de farmácias, o diretor da Latam/Close Up Brasil, Paulo Paiva, costuma ressaltar que as vendas são maiores naquelas regiões onde há maior concentração de médicos. “As regiões Sul e Sudeste continuam com forte concentração de médicos por habitante e isso tem gerado o aumento tanto do número de prescrições médicas quanto de demanda”, revela o diagnóstico Mercado Farmacêutico Brasil 2014 e Futuro, de autoria de Paiva.

RS atingiu o limite da pressão por consumo

No Rio Grande do Sul, a relação é de uma farmácia para cada grupo de 2,1 mil. Segundo levantamento da Anvisa, o estado tem 5,4 mil farmácias e drogarias com autorização de funcionamento. Vanini, município de 1.984 habitantes, no Noroeste gaúcho, tem três farmácias, uma para cada 661 pessoas, enquanto Araricá, de 4.864 habitantes, tem apenas uma farmácia. Porto Alegre excede em quatro vezes os parâmetros da OMS, com uma farmácia para cada grupo de 2.070 habitantes.

“Estamos no limite do suportável pela população do estado em termos de pressão pelo consumo”, resume o secretário-geral do Conselho Regional de Farmácia do Rio Grande do Sul (CRF-RS) e professor das disciplinas de Anatomia, Farmacologia, Deontologia e Bioestatística do curso de Farmácia do IPA, Maurício Schuler Nin. Segundo ele, o parâmetro recomendado pela OMS vem de estudos sobre o que é necessário para atender a uma demanda sem banalizar o comércio de medicamentos”.

Pacientes informados exigem médicos abertos a discutir diagnósticos e prescrições

Foto: Leonardo Savaris

Pacientes bem informados exigem dos médicos um atendimento mais humano e uma abertura quanto a discutir diagnósticos e prescrições

Foto: Leonardo Savaris

Com tanta farmácia, as ações impactam na própria relação de mercado e o resultado disso acaba sendo o descumprimento da legislação e do compromisso com a saúde pública, enumera. “A empurroterapia é condenável e cabe ao profissional com formação superior em Farmácia coibir os excessos e alertar para os riscos”. Uma das explicações para a proliferação de farmácias comerciais é a facilidade com que qualquer empresário pode abrir um ponto de venda. Ao contrário de outros países, em que esse tipo de estabelecimento é exclusividade de farmacêuticos profissionais com formação em Farmácia, no Brasil basta obter um alvará sanitário e encaminhar a papelada comum à abertura de qualquer outro negócio. Nos últimos três anos, o CRF-RS vem intensificando a fiscalização nas farmácias.

As blitze com apoio de fiscais da vigilância sanitária autuaram 1 mil estabelecimentos em 2012, 1,8 mil em 2013 e 3,2 mil em 2014, a maioria por descumprimento à legislação que obriga a presença de um profissional com formação superior em Farmácia no estabelecimento, má conservação e armazenamento inadequado de medicamentos.

PUBLICIDADE – Outra frente que assegura altas doses de consumo e lucros para a indústria farmacêutica é a publicidade, com ações de marketing que incluem desde equipes especializadas em influenciar e subornar médicos, ditar o layout das farmácias até as campanhas milionárias nos meios de comunicação. Em 2014, por exemplo, a Neo Química estreou uma ação de marketing composta de filmes para a tevê, impressos e spots de rádio em que o ex-jogador de futebol Ronaldo Nazário aparecia em horário nobre, alegre e descontraído, junto a balconistas de farmácia e anuncia o “remédio da família brasileira”.

Exemplos dessa banalização do consumo de medicamentos não faltam nos intervalos das telenovelas, mas o laboratório foi mais longe. Com uma política agressiva de marketing depois que foi incorporada pela Hypermarcas por R$ 1,3 bilhão, a Neo Química foi parar no uniforme do Sport Club Corinthians Paulista em 2010, por conta do maior contrato de patrocínio do futebol brasileiro: R$ 38 milhões mais R$ 9 milhões em ações de marketing e premiações. O garoto-propaganda da marca embolsou, só por esse contrato, nada menos que R$ 18 milhões.

O Brasil é campeão na fabricação do Clonazepam, princípio ativo do Rivotril

Foto: Igor Sperotto

O Brasil é campeão na fabricação do Clonazepam, princípio ativo do Rivotril

Foto: Igor Sperotto

Cultura da medicalização

A cultura da medicalização e da automedicação alimenta a falta de controle sobre o que é vendido nos balcões das farmácias comerciais – de analgésicos banais, mas viciantes, aos remédios para disfunção erétil a preços promocionais para consumo nas baladas, aos antidepressivos tarja-preta receitados por psiquiatras e obstetras. “O médico deve prescrever somente quantidade para uso, o resto é secundário. O médico precisa também ser educado com a noção de que a medicação é uma parte de seu trabalho, que ele precisa conhecer o paciente, sua família, seu meio, e entender o sofrimento, doença e saúde de forma integrada – dor na barriga, na cabeça, tristeza, raiva, nojo, apatia são expressão de um mesmo fenômeno, e sua palavra, atitude, afeto, atenção, também são ingredientes de cura. Para isso existem faculdades com currículos integrados, que devem formar médicos assim, pois depois de formado é difícil incutir esta mentalidade”, diz o psiquiatra Paulo Belmonte Abreu, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas: Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Ufrgs – Leia entrevista no www.extraclasse.org.br.

Para o médico, o acesso a informações virtuais está mudando o perfil dos pacientes no que se refere à compra de medicamentos. “Na verdade, vivemos em uma sociedade com cultura de crescente noção de individualismo e responsabilidade no autocuidado-manejo, com utilização de acesso ao conhecimento via web e redes sociais associadas, muitas vezes sem pleno entendimento do assunto, ou com plena veracidade de fontes”. Essa cultura de progressiva automonitoração e autonomia de decisão, afirma, “tem um lado positivo, e na verdade coloca o médico em um papel mais crítico e interativo, de uma pessoa que deve estar aberta para discutir impressões, diagnósticos e condutas, e não de uma criatura onipotente e autoritária”, pondera.

Paulo Belmonte Abreu, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas: Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Ufrgs

Foto: Igor Sperotto

Paulo Belmonte Abreu, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas: Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Ufrgs

Foto: Igor Sperotto

Saúde da população rifada em troca de brindes 

Para a saúde pública, a cultura da medicalização é preocupante, completa o antropólogo Rui Harayama, do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. “Diversas pesquisas na área apontam como são as indústrias farmacêuticas que têm ensinado aos médicos como realizar prescrições dos medicamentos por meio de seus representantes comerciais, os chamados ‘representantes da indústria farmacêutica’”. Segundo Harayama, pesquisas na área de Antropologia mostram como, em congressos, os médicos são convidados a preencher cadastros para receber material informativo e concorrer a prêmios como viagens ao exterior ou equipamentos médicos. “Isso coloca em questão: quem está formando esses profissionais? Em troca de quantos brindes já podemos rifar a saúde do paciente e da população?”, confronta.

De acordo com o antropólogo, a banalização do consumo de fármacos no Brasil só reforça a imagem de que para tudo nessa vida ‘há um remédio’, dando grandes lucros para as indústrias farmacêuticas. “E nessa lógica a farmácia passa a ser um supermercado da saúde. O Brasil, além de campeão na fabricação do Clonazepam – princípio ativo do Rivotril – está cada vez mais perto do modelo norte-americano, em que há um medo da velhice e da morte e uma indústria crescente dos complementos e suplementos vitamínicos e dos testes genéticos para prever ‘doenças’ como transtornos mentais e obesidades. Quanto suplemento de cálcio e de Ômega 3 são necessários para nos manter ‘saudáveis’? A falta de discussão sobre a importância e perigos do uso de fármacos, medicamentos e ‘testes genéticos’ nos torna zumbis em busca de uma ‘saúde’ pensada sempre na chave da doença”, compara Harayama.

O coordenador da PPG em Psiquiatria da Ufrgs acrescenta que o uso indiscriminado de substâncias controladas implica o risco de “alienação” e prejuízo na capacidade de adaptação do sujeito, se sedado de forma inadequada. “Ao mesmo tempo, são medicamentos de ‘tarja preta’, ou seja, necessitam receita especial – azul, que fica retida na farmácia. O que ocorre é que os pacientes pedem às vezes para diferentes médicos, e utilizam como um band-aid para enfrentar situações do dia a dia, e trocam informalmente, dentro da família e do trabalho, tipo “tem aí…?”, constata o psiquiatra Paulo Abreu.

Unidades de saúde

O conceito de farmácia foi modificado pela Lei 13.021/2014. De meros estabelecimentos comerciais, farmácias e drogarias passaram a ser consideradas unidades de prestação de assistência farmacêutica e à saúde, além de orientação sanitária individual e coletiva. A lei reitera a obrigatoriedade da presença permanente do farmacêutico (profissional com formação superior em Farmácia) nos estabelecimentos farmacêuticos de qualquer natureza. A Resolução 586/2013 do Conselho Federal de Farmácia (CFF) institui a prescrição farmacêutica ao autorizar os farmacêuticos a prescreverem medicamentos sem tarja (de venda livre), plantas medicinais, drogas vegetais e fitoterápicos também isentos de prescrição médica.

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Entrevista com presidente do Conselho Federal de Farmácia (CFF), Walter Jorge João.
Paulo Abreu, psiquiatra e coordenador do PPG da Ufrgs critica uso indiscriminado de medicamentos tarja preta

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